Luís Miguel de Oliveira Perry Nava nasceu em Viseu, Portugal, a 29 de setembro de 1957. Um dos poetas portugueses mais importantes da segunda metade do Século XX,  foi considerado a “Revelação do Ano”, pela Associação Portuguesa de Escritores, com a obra “Películas”, editada em 1979.

Nascido e uma família notável de Viseu, bisneto de José Bressane de Leite Perry, político da monarquia constitucional e visconde de Leite Perry, Luís Miguel Nava publicou o seu primeiro livro, “O Perdão da Puberdade”, em 1974, mas ele mesmo rejeitou a obra e a destruiu, após conhecer a poesia de Eugénio de Andrade.  Em 1983, partiu para a cidade de Oxford como leitor de português e, passados três anos, concorreu a um lugar de tradutor da Comunidade Económica Europeia. Ganhou o concurso e instalou-se em Bruxelas em 1986, trabalhando no Conselho das Comunidades Europeias, como tradutor de documentos burocráticos, tarefa que lhe era bastante fastidiosa.

Nava parece ter sido muito influenciado pelo imaginário e pela mitologia biográfica de escritores homossexuais como Arthur Rimbaud, André Gide, William Burroughs, Paul Bowles, Pier Paolo Pasolini ou o português Manuel Teixeira Gomes. À semelhança de muitos deles, também elegeu Marrocos e o México como locais de busca interior e de aventura erótica.

Luís Miguel de Nava faleceu no dia 9 de maio de 1995, em Bruxelas, Bélgica. O poeta, aos 37 anos, foi encontrado morto no seu apartamento, brutalmente assassinado. Veio a descobrir-se que o assassino fora um jovem marroquino, com quem se relacionava havia um ano – segundo os diários da vítima. Ao contrário do invocado pelo homicida, o motivo do crime não fora nada de passional, mas apenas o roubo, pois estavam na sua posse vários valores e cartões bancários, tendo levantado, nos dias seguintes ao crime, cerca de 50 mil francos da conta do poeta. Em 1996, o assassino foi condenado a 25 anos de prisão.

HÁ UMA PEDRA FEROZ

Há uma pedra feroz,
um rapaz,
há o olhar do rapaz atado à pedra,
o olhar do rapaz, a minha casa,
o olhar do rapaz às vezes é a pedra.

JÁ NEM SEQUER

As ondas que se encontram
ainda agora em formação no espírito
dele já não vêm rebentar ao meu.

Por mim não volto a vê-lo, encontros houve
com ele dos quais a alma ficou cheia de dedadas.

Já nem sequer dele quero ouvir falar,
saber que se ele
fosse uma cama estaria por fazer nada me traz
agora além de desconforto.

FALÉSIAS

Poder-me-ão encontrar, trago um rapaz na minha
memória, a casa a uma janela
da qual ele vem como um sabor à boca,
falésias onde o aguardo à hora do crepúsculo.

Regresso assim ao mar de que não posso
falar sem recorrer ao fogo e as tempestades
ao longe multiplicam-se ao passos.
Onde eu não sonhe a solidão fá-lo por mim.

O TÍMPANO E A PUPILA

Num dos prantos o mar, no outro um rio, agora
que o tempo se desossa,
que as pedras
que piso se me enterram na memória e os caminhos

se me aguçam na alma como lâminas, o pão
molhado nas feridas,
o pão
ele próprio já também uma ferida, agora

que o tempo, que já tanto
compararam a um rio, mais
não é do que uma leve exsudação nos muros,
nas mãos, agora

que o céu se encrespa e que pedaços
de mundo arremessados
com toda a força aos olhos revolteiam
na treva antes de se extinguirem,

mais magro do que a neve
caminho, a alma aberta como uma ferida
ao longo da memória, onde se fundem
o tímpano e a pupila.

BEM FUNDO

Um prego na gengiva,
bem fundo, até onde seria
de crer que só chegasse a alma, assim

as árvores nos crescem
por dentro da memória, onde as raízes
a fazem rebentar, assim

as folhas que nos servem
por momentos de pele
se nos agitam no espírito, onde a pele

se afunda como num écran,
a pele, um jeito de árvore que tivesse
um espelho entre as raízes,

a pele que nos vendou, que nos serviu
de venda e de memória,
brancura que o lençol disputa às trevas,

irmã dessa raiz
agarrada ao écran, dessa gengiva
esquecida já de ter estado na boca

e agora apenas presa
à alma, sobre a qual
parece debruçada.

CEGUEIRA

Um traço agudo e anónimo, apesar
de nela o coração fazer publicidade,
não dá
da pele a exata dimensão.

Qualquer de nós o sabe, ao exibirmos
as correias que prendem ao destino o coração
sentimos
romper-se a pele sob a cegueira dos tecidos.

UNIVESITY PARKS

Do céu pende a folhagem.
A miúda angústia a que
de novo apoio os cotovelos
adquire aqui tonalidades de ouro.

Passaram cães que pareciam cabras.
Por entre os vidros
inquietos dos meus óculos, o verde
das folhas tinge o coração.

Nas ervas
que crescem do meu espírito
pequenos animais escondem o focinho.

O mar vem agarrado à luz. As árvores
desafiam o sol como se nele
tivessem as raízes enterradas.

NINGUÉM SE LEMBRA

De quem ao coração vai buscar água
ninguém se lembra nem
de quem por tê-lo
pregado à pele mostra os seus pregos ferrugentos.

MERGULHO

O céu mal se equilibra, do mar, dele
no corpo os corações sendo embaixadas,
irrompem as falésias e nós, como
se as víssemos
melhor quando sobre elas o mar pousa uma das asas,
entramos por nós dentro até de nós
nem mesmo a mais pequena marca subsistir na água.

DESPENHADEIROS

A luz solidifica; ao desfazer-se-nos
o grão no coração, onde a memória o vai moer,
o sangue é quase espírito – a luz abre
nos nossos corações despenhadeiros.

É sempre o mar o que, no fundo, quem por eles
descer faz vir à superfície – o que dos olhos
nos rola, se desprende, o que fulgura
no fundo da memória. Entre o mar e a música há uma sílaba.

*Poemas do livro “Poesia”, Assírio & Alvim, 2024.