Laura Wittner nasceu em Buenos Aires, Argentina, no ano de 1967. É tradutora e poeta premiada. Traduziu para o espanhol obras de Claire-Louise Bennett, Anne Tyler, Leonard Cohen, James Schuyler, Katherine Mansfield, entre outros nomes. É autora de livros de poemas e de literatura infantil. “Viver e traduzir”, publicado originalmente em 2021, é seu primeiro livro de ensaios e recebeu o Prêmio Nacional da Argentina, na categoria ensaios artísticos. No Brasil, Laura Wittner tem publicado ainda o livro de poemas “Tradução da estrada” (2023).
Janta
Vou fritar vocês todos, leguminhos que sobraram,
porque é domingo à noite.
E domingo à noite é este magma
de passado e presente no feriado
de omeletes, de salsichas e de arenques
e pão australiano com manteiga e rabanetes
e sal, de filhos e netos de poloneses
dessa melancolia da infância
imprecisa, melancolia tateante
ensaio de alguma coisa mais definitiva.
Então preparem-se, legumes,
É noite de domingo e tudo frita.
Tive de novo um limão nas mãos
É uma coisa tão perfeita de se segurar.
Eu sabia disso? Me lembrava?
Olhem minha mão: se curva espontaneamente
e não sobra nada nela que não seja
limão: frescor, rugosidade, o peso,
o perfume terrível, a acidez.
Não há distância entre mão e o limão.
Significam o mesmo por um tempo.
Andam sete quarteirões até o metrô
Vão meus filhos uns metros à frente. A calçada
se ilumina, decresce, distrai
e tem colunas, a parede, a árvore.
Os irmãos riem das coisas:
das coisas próprias que são coisas do mundo.
Ela o empurra com o braço, ele
retribui com o quadril.
A sacola de cerejas, a leve lemon pie
que pedi para eles levarem já perderam a aura
esbarram as bordas
desafiam os laços
não fazem mais do que quase cair.
Olhos suas costas e calibro
essa certeza de que ali vão com tudo:
meu ânimo, minha vontade, meu coração
as frutas e a torta. As crianças
esquecem a fragilidade daquilo que levam.
Poema de amor
Ainda restam algumas persianas
e esta deixa passar umas sóbrias lembranças
de sol, tipo para que eu possa ler
e você dormir. Minha leitura se dilata
com o som da sua respiração.
No seu sono, que forma
ganha o atrito de quando eu
viro a página?
Por que se me derrubam mil vezes me levanto
Os pátios internos.
Os banheiros e cozinhas com pia quadrada.
Os ambientes semicirculares
com janelões de correr.
Uma cesta de basquete na rua
para que qualquer um arremesse.
O café exato que tudo arrasa
e tudo eleva durante meia hora.
O céu se descolorindo até ficar branco.
A pronúncia de um idioma estrangeiro
me envolvendo como uma atmosfera
carregada de sentidos ocultos.
As conversas com a minha filha na varanda.
As conversas com a minha filha no colchão
atravessado na sala, sem lençol.
A mão do meu filho adolescente
na minha mão quando ninguém o vê
traçando o mesmo carinho da infância.
A memória de todos os carinhos
que deixaram seu desenho indelével.
*Poemas do livro “Tradução da Estrada”, Círculo de Poemas, 2024.
Traduções de Estela Rosa e Luciana Di Leone