Afonso Félix de Sousa nasce a 5 de julho de 1925, em Jaraguá, Goiás. Poeta, cronista, jornalista e tradutor, fez parte da Geração de 45, a terceira fase modernismo brasileiro, ao lado de nomes como João Cabral de Melo Neto e Guimarães Rosa. Foi casado com a também poeta Astrid Cabral, com quem teve cinco filhos.

Os primeiros poemas de Afonso Félix de Sousa foram publicados em 1942, no jornal Voz Juvenil da cidade de Silvânia, em Goiás. No ano seguinte foi morar em Goiânia, e na capital passou a frequentar os principais circuitos literários da região, ganhando destaque e reconhecimento. Em 1946 fundou com outros escritores goianos a Associação Brasileira de Escritores — Seção de Goiás. Em 1947, concursado pelo Banco do Brasil, foi transferido para o Rio de Janeiro. Em 1953, mudou-se para Paris, para estudar em  Sorbonne. Designado, em 1970, pelo Ministério das Relações Exteriores e pelo Banco do Brasil, serviu como assistente de promoção comercial na Embaixada Brasileira em Beirute por dois anos e meio, regressando ao fim da missão para o Rio de Janeiro. Aposentou-se em 1975 e, a partir da década de 80, foi viver em Chicago, nos Estados Unidos.

Apresentando formas estéticas distintas, durantes fases literárias, Afonso Félix de Sousa mostrava habilidade de desenvolver sua poética tanto em textos abertos, livres e sem métricas, como em formas “fixas”, principalmente sonetos. Seus temas mais abordados são o amor, a poesia, as inquietações do poeta, além de explorar imagens das cidades por onde morou. Afonso Félix de Sousa faleceu no dia 07 de setembro de 2002, no Rio de Janeiro.

NASCIMENTO DO POEMA

Onde plasma o impossível
o que mais queres, onde auscultas
nas coisas o pulsar de enigmas,

onde a incoerência dos deuses
desaba em desertos de carne
e (cego) olhas a realidade.

Onde estás quando és
o mesmo, o múltiplo e pesa
em ti o que embora é morto — vives,

cantar ao sol da essência… e das formas
a que expanda, eterna,
a rosa agora a abrir-se,

e seja como som
ferindo os horizontes banidos
de tua alma,

e arda, diamante
no transmigrar-se
da flama em treva.

Do canto (do que nele
há de amargo) extrair o mel
com que te embriagues.

Dele — formar as asas
que te levam, leve,
enquanto, com o pensamento,
sonhas… pois se pensas, raízes
das mais pobres horas te penetram,
e cantar, já não cantas.

No etéreo, muito além
de onde os caminhos cortavam
o mistério, teu canto é um sopro.

E sopram os ventos, das sombras
que de ti se projetam
para ti, para trás,

e espalham as palavras
de que alcanças
a mansa superfície.

As palavras… como um fruto
abri-las – a polpa áspera
da vida.

POEMA

É fácil o amor
quando vencemos o nojo.

O coração encontra-se na rua,
rola sobre vestígios
de poemas recalcados.

Não sabemos sofrer.
Ora somos crianças,
ora gemidos patéticos
de carne se dilacerando.
Temos parentes, temos amigos,
temos direitos e deveres.
Tudo arrasta nossos corpos
por invariáveis caminhos.

Somos da rua, somos a rua.
Mulheres passeiam em nós,
sobre nós,
em nossos quartos, remorsos e destinos.
Seus passos são dor, canto,
sal e gargalhada.

Amamos
e esquecemos.

POEMA VISCERAL

Ser homem é ter o estômago
infinito dos deuses

e ter chegado tarde
ao banquete dos deuses

e ir por aí ciscando
as migalhas dos deuses

Ser homem é ter nas vísceras
os abutres dos homens

e ir por aí bicando
as migalhas dos homens

Ser homem é ter o estômago
infinito dos homens

SONETO XVII

Não importa que pese agora a noite: eu amo
E que noites na noite! — exclamo, e não me importa.
As árvores da vida envolvem-me num ramo
a alma que, por amar, se morre e nunca é morta.
Eu amo — e a infância acorda e acorda um fim de tarde.
Eu amo — e canta um galo em fimbrias de manhãs.
Eu amo — e o meio-dia em verdes campos arde.
Eu amo — e a própria noite embrulha-me em suas lãs.
Não me importa que pese (e sempre!) em mim o mundo,
se lhe anteponho — ao mundo —  o mundo onde palpita
o que há de mais profundo em meu ser vagabundo,
e se um protesto-flor sempre em meu peito grita.
.      Eu amo — e é este amor o que mais pesa em mim.
.       De cada pensamento é o começo e o fim.

SONETO DO REENCONTRO

Nada mais a esperar, se o sentimento
que um dia escravo e deus em mim fizera,
é hoje o doce e o amargo no alimento
a alimentar que sou com quem eu era

e nunca o fui, senão em pensamento.
Nada mais esperar? — Mas clama a espera
no fundo do que sonho, quero e invento
com o que resiste, em mim, ao anjo e à fera.

Oh, não mais esperar! — E o desespero
seria em minha voz, como em meus braços,
as espera mais total, do prisioneiro

que, encerrado em si mesmo, sente o espaço…
Que inteiro está o amor no derradeiro
pedaço deste amor que despedaço.

CONVITE

Agora que o campo é de areia
pisemos de modo que os rastos
não nos mostrem como voltarmos.

E vamos ao mar, que derrama
sobre nós seu licor de pérola
e em mim todo um fervor de espumas.

Sei de ilhas contidas em conchas.
A elas pediremos repouso
quando a noite trouxer lembranças.

Segue-me… e para trás deixemos
pais e irmãos, esposos e filhos,
e os cinzas gradis que nos guardam.

Depois de ao mar nos atirarmos,
qual seja o rumo a que nos leve
há de ter fim no que buscamos.

*Poemas do livro “Chamados e escolhidos”, Editora Record, 2001.