Ronald Arthur Paula e Silva de Carvalho, nasceu no dia 16 de maio de 1893, no Rio de Janeiro. Eleito “Príncipe dos Prosadores Brasileiros”, pelo Diário da Notícia, em 1935, foi um dos maiores personagens do modernismo brasileiro, tendo forte atuação na Semana de Arte Moderna, em 1922. Reconhecido internacionalmente, colaborou na 1ª edição da revista Orpheu, de Portugal, juntos a nomes como Fernando Pessoa, Mário Sá-Carneiro e José de Almada-Negreiros.

Poeta e político, Ronald de Carvalho atuou por vários anos como diplomata. Entre idas e vindas, morou em Paris, na França, onde cursou Filosofia e Sociologia, e também em Lisboa, Portugal, onde foi agraciado com o grau de Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, em 1923. A vida na Europa, em meio à efervescência dos movimentos modernistas, fez com que o poeta passasse a observar a arte sob novos primas. Sua obra, fortemente marcada pela influência de simbolistas franceses, como Paul Verlaine e Charles Baudelaire, apresenta os traços contra as convenções rígidas da poesia tradicional e abraçou diversas formas de linguagem.

Ronald de Carvalho faleceu com 41 anos de idade, vítima de acidente automobilístico, no Rio de Janeiro, em 15 de fevereiro de 1935.

ADVERTÊNCIA

Europeu!
Nos tabuleiros de xadrez da tua aldeia,
na tua casa de madeira,
pequenina, coberta de hera,
na tua casa de pinhões e beirais, vigiada
por filas de cercas paralelas,
com trepadeiras moles balançando e florido;
na tua sala de jantar, junto do fogão de azulejos,
cheirando a resina de pinheiro e fala;
na tua sala de jantar, em que os teus avós
leram a Bíblia e discutiram casamentos,
colheitas e enterros,
entre as tuas arcas bojudas e pretas, com
lãs felpudas e linhos encardidos,
colares, gravuras, papéis graves e moedas
roubadas ao inútil maravilhoso;
diante do teu riacho, mais antigo que as
Cruzadas, desse teu riacho serviçal,
que engorda trutas e carpas;

Europeu!
Em frente da tua paisagem, dessa tua paisagem
com entradas,
quintalejos, campanários e burgos,
que cabe toda na bola
de vidro do teu jardim;
diante dessas tuas árvores que conheces
pelo nome – o carvalho do açude, o
choupo do ferreiro, a tília da ponte –
que conheces pelo nome como os teus
cães, os teus jumentos e as tuas vacas;

Europeu!
Filho da obediência da economia
e do bom senso,
tu não sabes o que é ser Americano!

Ah! Os tumultos do nosso sangue temperado
em saltos e disparadas sobre pampas,
savanas, planaltos, caatingas onde estouram
boiadas tontas, onde estouram
batuques de cascos, tropel de patas,
torvelinho de chifres!
Alegria virgem das voltas que o laço dá na
coxilha verde,
alegria virgem de rios-mares, enxurradas,
planícies cósmicas, picos e grimpas,
terras livres, ares livres,
florestas sem lei!
Alegria de inventar, de descobrir,
de correr!
Alegria de criar o caminho com a planta
do pé!

Europeu!
Nessa maré de massas informes,
onde as raças e as línguas se dissolvem,
o nosso espírito áspero e ingênuo
flutua sobre as coisas,
sobre todas as coisas divinamente rudes,
onde bóia a luz selvagem do dia Americano!

BRASIL
A FERNANDO HAROLDO

Nesta hora de sol puro
palmas paradas
pedras polidas
claridades
faíscas
cintilações

Eu ouço o canto enorme do Brasil
Eu ouço o tropel dos cavalos de Iguaçu
correndo na ponta das rochas nuas,
empinando-se no ar molhado, batendo
com as patas de água na manhã de
bolhas e pingos verdes;

Eu ouço a tua grave melodia, a tua bárbara
e grave melodia, Amazonas, a melodia
da tua onda lenta de óleo espesso,
que se avoluma e se avoluma,
lambe o barro das barrancas,
morde raízes, puxa ilhas
e empurra o oceano mole como um touro
picado de farpas, varas, galhos e
folhagens;

Eu ouço a terra que estala
no ventre quente do nordeste,
a terra que ferve na planta
do pé de bronze do cangaceiros,
a terra que se esboroa e rola
em surdas bolas pelas estradas do Juazeiro,
e quebra-se em crostas secas,
esturricadas no Crato
chato;

Eu ouço o chiar das caatingas – trilos, pios,
pipilos, trinos, assobios, zumbidos, bicos
que picam, bordões que ressoam retesos,
tímpanos que vibram límpidos, papos
que estufam, asas que zinem zinem
rezinem, cris-cris, ciclos, cismas, cismas
longas, langues – caatingas debaixo do céu!
Eu ouço os arroios que riem,
pulando na garupa dos dourados gulosos,
mexendo com os bagres no lima das luras
e das locas;

Eu ouço as moendas espremendo canas,
o glu-glu do mel escorrendo nas tachas,
o tinir das tigelinhas nas seringueiras;
e machados que disparam caminhos,
e serras que toram troncos,
e matilhas de “Corta-vento”, “Rompe-Ferro”,
“Faíscas” e “Tubarões”
acuando saçuaranas e maçarocas,
e mangues borbulhando na luz,
e caititus tatalando as queixadas
para os jacarés que dormem
no tejuco morno dos
igapós…

Eu ouço todo o Brasil cantando, zumbindo,
gritando vociferando!
Redes que se balançam,
sereias que apitam,
usinas que rangem, martelam, arfam,
estridulam, ululam e roncam,
tubos que explodem,
guindastes que giram,
rodas que batem,
trilhos que trepidam,
rumor de coxilhas e planaltos, campainhas,
relinchos, aboiados e mugidos,
repique de sinos, estouros de foguetes,
Ouro Preto, Bahia, Cangonhas, Sabará,
vaias de Bolsas empinando números como
papagaios,
tumulto de ruas que saracoteiam sob
aranha-céus,
vozes de todas as raças que a maresia dos
pontos joga no sertão!

Nesta hora de sol puro eu ouço o Brasil.
Todas as tuas conversas, pátria morena,
correm pelo ar…
A conversa dos fazendeiros nos cafezais,
a conversa dos mineiros nas galerias de ouro,
a conversa dos operários nos fornos de aço,
a conversa dos garimpeiros, peneirando as
báteas,
a conversa dos coronéis nas varandas das
roças…

Mas o que eu ouço, antes de tudo, nesta hora
de sol puro
de palmas paradas
pedras polidas
claridades
brilhos
faíscas
cintilações

é o canto dos teus berços, Brasil,
de todos esses teus berços, onde dorme,
com a boca escorrendo leite,
moreno, confiante,
o homem de amanhã!

BROADWAY
A MÁRIO DE ANDRADE

Chato, pardo-cinzento, o chão
flutua lento, mole,
o chão escorre vagaroso,
contrai-se em blocos súbitos,
estica-se em flechas longas
trepidantes,
dispara, de repente, em riscos elásticos,
gira,
rodopia,
turbilhona e ferve num vapor sutil de linhas e
movimentos.

Aquele chão carrega todas as imaginações
do mundo!
Aquele chão carrega
iscas da Ucrânia,
vinhas de Bordéus,
parques do Tâmisa,
saveiros do Volga,
âmbar, corais, madrepérolas das Antilhas,
guano de Mollendo,
canaviais de Cuba,
juncos de Shangai,
cafezais de Ribeirão Preto,
chifres de Pampa,
fornos de Essen, fornos de Newcastle,
óleos de Tampico,
salitres de Iquique,
barbatanas da Terra Nova,
mares coalhados de ferros e madeiras,
terras gordas,
ilhas com batuques, tan-tans e redes
molinosas,
montanhas verdes, montanhas de óxidos e
cristais,
rios onde bóiam troncos, plantas, cobras e
tartarugas,
florestas de plumas, penas e folhagens,
praias, canais, mangues,
luzes de trópicos, luzes do polo,
desertos,
civilizações…
Aquele chão é uma paisagem em marcha.
Chão que mistura as poeiras do Universo e
onde se confundem todos os ritmos do
passo humano!

Chão épico, chão lírico, chão idealista,
chão indiferente de Broadway,
largo, chato, prático e simples como este
roof liso, suspenso no ar, este roof, onde um
saxofone derrama um morno torpor
de senzalia debaixo do sol.

TODA A AMÉRICA
A RENATO ALMEIDA

Onde estão os teus poetas,
América?
Onde estão eles que não
compreendem os teus
meio-dias voluptuosos,
as tuas redes pesadas
de corpos eurítmicos,
que se balançam nas sombras úmidas,
as tuas casas de adobe que dormem
debaixo dos cardos,
os teus canaviais que estalam e se
derretem em pingos de mel,
as tuas solidões, por onde o índio passa,
coberto de couro, entre rebanhos de
cabras,
as tuas matas que chiam que trilam, que
assobiam e fervem,
os teus fios telegráficos que enervam a
atmosfera de humores humanos,
os martelos dos teus estaleiros,
os silvos das tuas turbinas,
as torres dos teus altos fornos,
o fumo de todas as tuas chaminés,
e os teus silêncios silvestres que absorvem
e espaço e o tempo?

Onde estão os teus poetas, América?
Onde estão eles que não se debruçam,
sobre os trágicos suores das tuas sestas
bárbaras?
No teu sangue mestiço crepitam fogos de
queimadas,
juízes, tribunais, leis, bolsas, congressos,
escolas, bibliotecas, tudo se estilhaça
em clarões de repente, nos teus
pesadelos irremediáveis.
Ah! Como sabes queimar todos esses
troncos da floresta humana,
e refazer, como a Natureza, a tua ordem
pela destruição!

Onde estão os teus poetas, América?

Onde estão eles que não vêem o alarido
construtor dos teus portos,
onde estão eles que não vêem essas bocas
marítimas que te alimentam de
homens,
que atulham de combustível as fornalhas
dos teus caldeamentos,
onde estão eles que não vêem todas essas
proas entusiasmadas,
e esses guindastes e essas gruas que se
cruzam,
e essas bandeiras que trazem a maresia
dos fiordes e dos golfos,
e essas quilhas e esses cascos veteranos
que romperam ciclones e pampeiros,
e esses mastros que se desarticulam,
e essas cabeças nórdicas e mediterrâneas,
que os teus mormaços vão fundir em
bronze,
e esses olhos boreais encharcados de luz
e de verdura,
e esses cabelos muito finos que procriarão
cabelos muito crespos,
e todos esses pés que fecundarão os teus
desertos!

Teus poetas não são dessa raça de servos
que dançam no compasso de gregos e
latinos,
teus poetas devem ter as mãos sujas de
terra, de seiva e limo,
as mãos da criação!
E inocência para adivinhar os teus
prodígios,
e agilidades para correr por todo o teu
corpo de ferro, de carvão, de cobre, de
ouro, de trigais, milharais e cafezais!

Teu poeta será ágil e inocente, América!
A alegria será a sua sabedoria,
a liberdade será a sua sabedoria,
e sua poesia será o vagido da tua própria
substância, América, da tua própria
substância lírica e numerosa.

Do teu tumulto ele arrancará uma energia
submissa,
e no seu molde múltiplo todas as formas
caberão,
e tudo será poesia na força da sua
inocência.
América, teus poetas não são dessa raça
de servos que dançam no compasso de
gregos e latinos!

*Poemas do livro “Toda a América”, Razão Cultural, 2001.

EPIGRAMA

Enche o teu copo, bebe o teu vinho,
enquanto a taça não cai das tuas mãos…
Há salteadores amáveis pelo teu caminho.
Repara como é doce o teu vizinho,
repara como é suave o olhar do teu vizinho,
e como são longas, discretas, as suas mãos…

O CANTO QUE ME ENSINASTE

O CANTO que me ensinaste foi virgem e livre:
todas as águas balançaram nelle,
todos os ventos murmuraram nelle,
todos os perfumes se impregnaram nelle.

Foi como um vôo,
foi como um vôo longo, longo,
um vôo todo verde n teu sol todo de ouro, no eu ar todo azul
o canto virgem, o canto livre que me ensinaste.

MEIO –DIA

CHOQUE de claridades
Palmas paradas
Brilhos saltando nas pedras enxutas.
Batendo de chofre na luz
as andorinhas levam o sol na ponta das asas!

SABEDORIA

Enquanto disputam os doutores gravemente
sobre a natureza
do bem e do mal, do erro e da verdade,
do consciente e do inconsciente;
enquanto disputam os doutores sutilíssimos,
aproveita o momento!

Faze da tua realidade
uma obra de beleza

Só uma vez amadurece,
efêmero imprudente,
o cacho de uvas que o acaso te oferece…