António José Forte nasceu a 15 de dezembro de 1931, em Villa Franca de Xira, Póvoa de Santa Iria, Portugal. Poeta ligado ao surrealismo, fez parte do Grupo do Café Gelo, ao lado de nomes como Mário Cesariny e Herberto Helder.

António José Fonte deixou uma obra curta, que iniciou em 1958, mas que lhe consolida como um dos principais poetas de sua geração. Com uma poesia caracterizada por uma certa perversão do “discurso poético” e a utopia ideológica, anárquica e subversiva, traz uma forte referência do poeta francês André Breton, um dos líderes do surrealismo francês.

António José Fonte faleceu no dia 15 de dezembro de 1988, em Lisboa, Portugal.

POEMA

Um sábio
não sabia fumar cachimbo

mas a mulher do sábio sabia

quando o sábio chorava
por não saber fumar cachimbo
a mulher do sábio sorria

e assim durante meses e anos

até que
no dia em que o sábio sabia que morria
não disse à mulher que sabia

por isso quando ele chorava
a mulher do sábio sorria

O DEGOLADO

O degolado que dizia
que ficara sem cabeça
por causa da poesia

o degolado que gritava
por causa da mulher
que era quem mais amava

o degolado que gemia
por causa do silêncio
que à sua volta havia

o degolado que parecia
que quanto mais calava
mais ele enrouquecia

o degolado que sorria
com a língua de fora
e uma lágrima de alegria

o degolado que ainda olhava
mas que já não via
a morte que o matava

o degolado de olhos tortos
e revirados para o céu
como os de todos os mortos

OS MEUS AVIADORES

No ano primeiro do fim da melancolia
enquanto os dias e as noites se devoram
é por mim que escrevem os aviadores
com a minha letra solitária
sobre a multidão no deserto

podem ler quando eu passo
despido de trevas

é a caligrafia da serpente
das praias do tempo da minha infância
onde amanhece
quando faço o gesto de matar

posso mandar os meus aviadores escrever
quando passarem sobre os Pirenéus
ao lado da fome da multidão no deserto

no avião mais alto    que vai explodir
voa a minha angústia

podem ver
na linha do horizonte
uma asa de sangue contra o rosto
a minha máscara de amante
de bruços sobre a terra

sou eu à espera dos meus aviadores

MEMORIAL

As tuas mãos que a tua mãe cortou
para exemplo duma cidade inteira
o teu nome que os teus irmãos gastaram
dia a dia e que por fim morreu
atravessado na tua própria garganta
as tuas pernas os teus cabelos percorridos
rato após rato tantos anos
durante tanta alegria que não era tua
os teus olhos mortos eles também
na primeira ocasião do teu amante
assim como as palavras ainda fumegando docemente
sob as pedras de silêncio que lhes atiraram para cima
o teu sexo os teus ombros
tudo finalmente soterrado
para descanso de todos
– mesmo dos que estavam ausentes

RETRATO DO ARTISTA EM CÃO JOVEM

Com o focinho entre dois olhos muito grandes
para trás de lágrimas maiores
este é de todos o teu melhor retrato
o de cão jovem a que só falta falar
o de cão através da cidade
com uma dor adolescente
de esquina para esquina cada vez maior
latindo docemente a cada lua
voltando o focinho a cada esperança
ainda sem dentes para as piores surpresas
mas avançando a passo firme
ao encontro dos alimentos

aqui estás tal qual
és bem tu o cão jovem que ninguém esperava
o cão de circo para os domingos da família
o cão vadio dos outros dias da semana
o cão de sempre
cada vez que há um cão jovem
neste local da terra

DIA A DIA AMANTE DO POETA

É o dia a dia amante do poeta

um rosto contra todas as pátrias
num arco de versos      no deserto do século

uma cratera aberta no silêncio
para engolir todo o pranto da terra
até o homem ficar nu

ouro sobre azul sobre a morte
definitivamente

É o dia a dia amante do poeta

as letras do seu nome
pronunciadas no abismo
enquanto um povo inteiro desaparecido em beleza
sob a asa do mistério
canta na sua boca

e um oceano   e outro oceano
amanhece contra o coração

toda a saliva do amor
como uma serpente
sorrindo num vendaval de estandartes brancos
desfraldados a teus pés

caligrafia de aves sobre o precipício
antes do relâmpago
na neve devagar
até explodir nos lábios

*Poemas do livro “Un couteau entre les dents”, Editora Ab irato, 2007.