José Paulo Paes nasceu a 22 de julho de 1926, em Taquaritinga, São Paulo. Poeta, tradutor, ensaísta e crítico literário, tem sua obra comparada às dos poetas da “Geração de 45”, tendo inclusive participado de uma antologia na companhia de Haroldo de Campos e Décio Pignatari, quando eram chamados de “Novíssimos”. Vencedor do Prêmio Jabuti por três vezes (1983, 1986 e 1988), organizou, ao lado de Massaud Moisés, o Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira, publicado em 1967. Faleceu no dia 9 de outubro de 1998, em São Paulo.

CEM ANOS DEPOIS

Vamos passear na floresta
Enquanto D.Pedro não vem.
D.Pedro é um rei filósofo,
Que não faz mal a ninguém.

Vamos sair a cavalo,
Pacíficos, desarmados:
A ordem acima de tudo,
Como convém a um soldado.

Vamos fazer a República,
Sem barulho, sem litígio,
Sem nenhuma guilhotina,
Sem qualquer barrete frígio.

Vamos com farda de gala,
Proclamar os tempos novos,
Mas cautelosos, furtivos,
Para não acordar o povo.

O ALUNO

São meus todos os versos já cantados:
A flor, a rua, as músicas da infância,
O líquido momento e os azulados
Horizontes perdidos na distância.

Intacto me revejo nos mil lados
De um só poema. Nas lâminas da estância,
Circulam as memórias e a substância
De palavras, de gestos isolados.

São meus também os líricos sapatos
De Rimbaud, e no fundo dos meus atos
Canta a doçura triste de Bandeira.

Drummond me empresta sempre o seu bigode,
Com Neruda, meu pobre verso explode
E as borboletas dançam na algibeira.

BRECHT REVISITADO

partido: o que partiu
rumo ao futuro
mas no caminho esqueceu
a razão da partida

(só perdemos
a viagem camaradas
não a estrada
nem a vida)

NOTURNO

O apito do trem perfura a noite,
As paredes do quarto se encolhem.
O mundo fica mais vasto.

Tantos livros para ler
tantas ruas por andar
tantas mulheres a possuir…

Quando chega a madrugada
o adolescente adormece por fim
certo de que o dia vai nascer especialmente para ele.

ESCOLHA DE TÚMULO

.                Mais bien je veux qu’un arbre
.                m’ombrage au lieu d’un marbre

.                                                             Ronsard

Onde os cavalos do sono
batem cascos matinais.

Onde o mundo se entreabre
em casa, pomar e galo.

Onde ao espelho duplicam-se
as anêmonas do pranto.

Onde um lúcido menino
propõe uma nova infância.

Ali repousa o poeta.

Ali um vôo termina,
outro vôo se inicia.

FLORENÇA: ANTEDILUVIANA

se um dilúvio levasse tudo menos esta
galleria degli uffizi
seria muito fácil reconstruir o mundo:
não como era
mas como deveria ter sido

GRAFITO

neste lugar solitário
o homem toda manhã
tem o porto estatutário
de um pensador de rodin

neste lugar solitário
extravasa sem sursis
como num confessionário
o mais íntimo de si

neste lugar solitário
arúspice desentranha
o aflito vocabulário
de suas próprias entranhas

neste lugar solitário
faz a conta mais doída:
em lançamentos diários
a soma de sua vida

SALDO

a torneira seca
(mas pior: a falta
de sede)

a luz apaga
(mas pior: o gosto
do escuro)

a porta fechada
(mas pior: a chave
por dentro)

*Poemas do livro “Melhores poemas de José Paulo Paes”, Editora Global, 2003.