Nascido no Recife, em Pernambuco, a 06 de agosto de 1960, João Flávio Cordeiro da Silva, ganhou o apelido “Miró do Muribeca” por ser comparado ao jogador de futebol Mirobaldo, que defendia o Santa Cruz na época. Por viver muito tempo no pequeno bairro da Muribeca, tornou-se o “Miró, da Muribeca”, e assumiu o nome como pseudônimo artístico, se apresentando nas ruas da cidade com seus versos marcados por muito lirismo. Com o tempo, ganhou repercussão sendo voz de denuncia à desigualdade social e à violência policial que experimentava no dia-a-dia. Em sua carreira, publicou mais de 15 livros e tem poemas traduzidos para o espanhol e para o francês. Miró faleceu aos 61 anos, em julho de 2022.

Há Deus 1

Deus fez o homem
e com o tempo foi deixando ele criança
cabelos brancos
dormindo depois do almoço
jogando no bicho
ou indo capenga aceitar Jesus

Deus fez o homem
com um cimento tão raro
misturou com uma areia tão fina
que é bem provável
que a gente volte ao barro

Há Deus 2

Deus, tu que agora carregas um homem
puxando pelas rédeas seu cavalo e uns
sacos de cimento
de cada lado num sol insuportável

Deus
chove agora no meu coração
para que eu não pense em comprar um
guarda-chuva de balas
e fazer justiça com as próprias mãos

Pra mim

quando se esquece de si
se torna a vida troncha
pensar muito em outro que não te pensa
é abismo

Não sei se

o mundo não tem jeito
Deus foi brincar de se esconder
ficou atrás do porte esperando que o
homem se iluminasse

e tome bomba atômica
e tome gente catando comida no lixo
e tome tanque de guerra num homem
nas ruas da China
e tome propina para simplesmente asfaltar
as ruas que não são asfaltadas, fora os
assaltos que até esse Deus perdeu a conta

o mundo não tem jeito
Deus foi brincar de rodar o pião
e assim
não caminha a humanidade

Hai-Kai

urubu come carniça
e voa
ser humano come
hambúrguer
e nem nem

Aqui Jazz

abro a porta de mim
dou a cara
com um cheiro de álcool insuportável
toco fogo e saio andando
cinzas de Luna e Espinhara
deixam meus cabelos brancos
e o fígado pedindo calma

ando mais um pouco
e encontro no sofá antigo
os 82 anos de Dona Joaquina
sento meus 46 anos
e vou folheando um álbum cheio de retratos
(descubro que eu não era assim)
e assim
toco fogo no álbum
fecho a porta
e saio de soslaio
pra não ser pego de surpresa
pelos cacos de cerveja
foi pago para matar
numa segunda-feira pela manhã

330 reais
era fácil
o cara sempre tava no mesmo canto
tomando cerveja
saindo ou não o sol
só não constava que nesse dia
ele estaria com um terço na mão

não se mata um homem com um terço na mão

fugiu ligar do orelhão
comprou uma carteira de Derby azul
assim como a cor do dia

e devolveu os 300 reais

Providências de vida

olho pra mim
torno o olhar
a morte toca
em meu ombro direito

rapidamente
guardo todos os meus segredos
no bolso esquerdo
da calça

no direito
alguns cruzeiros
e pra não morrer
feio
beijo o espelho

*Poemas do livro “Miró até agora”, Cepe Editora, 2019.