Por Igor Calazans

José Salgado Santos, ou simplesmente Salgado Maranhão (nome dado pelo poeta Torquato Neto), nasceu em Caxias, em 1953. É poeta e compositor ligado ao movimento Tropicalista. Foi alfabetizado aos 15 anos, mas foi aos 20 anos, quando se mudou para o Rio de Janeiro que passou a escrever seus primeiros versos. Já foi traduzido para o inglês, alemão, italiano, francês, sueco e japonês. Sua obra foi estudada em importantes faculdades norte-americanas, como Havard e Yale. Venceu por duas vezes o Prêmio Jabuti de Poesia, com o livro “Mural de Ventos”, em 1999, e com a obra “Ópera de Nãos”, em 2016. Venceu em 2011 com o livro “A cor da palavra”, o prêmio da Academia Brasileira de Letras, na categoria poesia. Recentemente, o poeta teve o poema “Índio Velho”, publicado pelo jornal New York Times.

ÍNDIO VELHO – Salgado Maranhão

Já nos tiraram o couro
e o sangue;
já nos rifaram a terra
e seus nomes santos
(deixando-na rente ao osso).
Insaciáveis, agora, trocam-nos
pelos bois.
Não, à seiva do agrobusiness!
Não, à sorte da agromorte!
Não ao tablet sem a Taba!
Geme a flora,
geme a fauna,
geme o rio de mercúrio.
Do fogo não brotam flores.
Deixem o que ainda nos resta!
O que veste o índio é a floresta.

ENTREVISTA

01 – O que significa ser Poeta na atualidade?

– Ser poeta nesses tempos significa o que sempre significou ao longo da história da humanidade: a voz mais genuína na hora da crise. Porque, semelhante à criança, o poeta não busca aparar contornos, dá-nos o real ainda cheirando a sangue. Com todas as contradições aberrantes e inesperadas, sem arrumar a cena do crime, sem alinhamentos nem conchavos. O poeta só deve ser devoto da sua própria poesia, que já é a voz mais precisa e contundente do que qualquer outra forma discurso. Além de implantar um mundo de luxuriante beleza, feito flores sobre ruínas.

02 – Qual é a sua visão sobre a produção poética contemporânea?

– No Brasil, já tivemos muitas fases. Umas de contenção e outras de expansão. Atualmente, por conta de muitos fatores, inclusive, da internet, a produção, de tão vasta, é inclassificável. Porém, isso não é ruim, ao contrário, nesse caldeirão de falares, há muita coisa boa, surpreendente, inusitada. Antes, certos segmentos da sociedade, que não tinham acesso ao livro — os negros, por exemplo — não tinham voz; no momento, é por onde a poesia mais se renova.

03 – Qual é a função social da poesia e do/a poeta na atualidade? Ele/a precisa ser atuante e se posicionar?

– A poesia vive e atravessa o circunstancial sem se submeter a ele. Seu maior compromisso é com a linguagem, através da língua, naturalmente. Assim sendo, a poesia é uma atividade multidisciplinar que interfere em todos os assuntos, mantendo-se fiel apenas aos seus meios e motivações. Como cidadão o poeta pode envolver-se nas lutas que bem entender, porém, aquele que instrumentaliza sua arte em prol de causas circunstanciais, barateia e cunspurca a força da sua própria voz.

04 – Inspiração ou transpiração: o que é mais importante na sua produção poética?

– Em mim, a poesia se realiza em dois momentos: epifania e carpintaria. Do primeiro momento depende o segundo; e deste, a plenitude do poema. Sem esse impacto mágico das coisas do mundo em meu psiquismo (que podemos chamar de inspiração), as palavras não têm encantamento. Porém, sem as aparas dos exageros na consecução do texto em si, o poema não se impõe como obra de arte que transcenda o autor e alcance o outro. Como já nos disse João Cabral de Melo Neto: “A poesia é fácil para o leitor, mas, muito trabalhosa para o poeta”.

05 – Quais são suas principais referências poéticas? Como elas acrescentaram na sua escrita?

– Minha escrita bebe em muitas fontes e vivências. Venho da região rural do Maranhão (município de Caxias), que me agregou o exercício da memória e a paixão, desde cedo, pelo cantadores repentistas. Ali foi plasmado, em meu subconsciente, os primeiros raios da poesia. Tanto que, quando eu fui viver em Teresina e conquistei o hábito da leitura, a poesia foi minha escolha principal. Foi através dela que encontrei os autores que me são referências até hoje, tais como Gonçalves Dias, Camões, Fernando Pessoa, Maiakovski, Baudelaire, Manuel Bandeira, João Cabral, Drummond e mais uma legião infindável.

06 – Versos livres ou métricos? Linguagem coloquial ou erudita? Você diferencia poesia de poema? Como? Ainda há espaço para poemas líricos, clássicos e ditos “fixos”?

– As descobertas técnicas cumulativas que fomentam o exercício do fazer poético, são conquistas que se firmaram através da história da literatura. Elas nunca perecem, nós, os poetas, é que perecemos. Porque temos que ajustar cada descoberta ao tempo vivido. Assim sendo, tanto o verso metrificado, quanto o verso livre, carece de um ingrediente insubstituível aos autores: talento. Quanto à diferença entre “Poesia” e “Poema”, nos dias de hoje esses conceitos se erroneamente se confundem. Mas, “Poesia” é o ente abstrato, de onde o poema se corporifica enquanto objeto da linguagem.

07 – Por que você escreve?

– Eu canto porque o instante existe/e minha vida está completa,/não sou alegre nem sou triste,/sou poeta.” Não há melhor definição para o exercício do poeta, do que esta da Cecília Meireles. Eu escrevo porque é o meu melhor lugar de respirar, de atestar que vivo e broto, e frutifico. Tendo me apossado da palavra escrita relativamente tarde, sua corporalidade e sua música verbal são motivos de permanentes regozijo e encantamento. Tanto que, meu principal prazer com o ato da escrita, é a própria realização do poema, publicar já é outra relação que se conecta com a alteridade.

08 – Estamos historicamente em uma geração que busca “revisar” os acontecimentos do mundo e trazer à tona as versões oprimidas. Com isso, muitas obras clássicas passaram a ser criticadas, assim como seus autores. É possível separar os tempos e não associar esse passado à atualidade?

– Em algum momento esse questionamento em relação aos autores do passado iria acontecer. Faz parte do permanente processo de reformulação dos pensares e costumes das sociedades através da história. Essa postura que hoje nos alcança, vem do mundo acadêmico americano, na esteira do “Politicamente Correto”. O que é importante observar, é que, nada se pode fazer com o passado, exceto não repeti-lo no presente. Esse é o dever dos que hoje vivem e pensam uma nova sociedade. O que está feito e acabado, nos dá a oportunidade de ver até onde avançaram os que nos antecederam, agora é a nossa vez de avançar. Os equívocos anteriores nos convocam a fazer diferente.

09 – Como você vê a efervescência da poesia e o aparecimento de inúmeros poetas nas redes sociais? Esse aumento traz benefícios? Ajuda ou atrapalha? Aproxima a poesia das pessoas ou banaliza a qualidade de produção?

– Acho extremamente profícuo essa ocupação da poesia nas redes sociais. Muito gente que nunca tinha lido um poema, agora os tem na ordem do dia. O leitor que hoje começa lendo um poema na internet, amanhã pode chegar ao livro, porque perdeu inibição. Não se pode gostar do que não se conhece. À parte isto, não tem só poesia ruim na rede, como já nos disse Murilo Mendes: “A poesia –como o vento–sopra onde quer”.

10 – Como poeta, de que maneira você acha que será lembrado/a um dia?

– Se no futuro lembrarem de mim, certamente, será como alguém que buscou ser, com as palavras, uma cópia de si mesmo.

*Entrevista retirada do livro “Na Poesia Viva: A Poesia Contemporânea Em Frente e Verso”, de Igor Calazans, publicado pela Editora Viés, em 2020.