Mailson Furtado Viana, nascido em Cariré-CE, no dia 15 de março de 1991. Escritor, ator, diretor teatral e dramaturgo, é graduado em Odontologia pela Universidade Federal do Ceará. É autor dentre outras obras de À cidade, vencedora do 60º Prêmio Jabuti 2018 – categoria Poesia e livro do Ano. Em Varjota/CE, cidade onde sempre viveu, fundou em 2006, a CIA teatral Criando Arte, onde realiza atividades de ator, diretor e dramaturgo, além de produtor cultural da Casa de Arte CriAr. Tem obras publicadas em jornais, revistas e antologias no Brasil, França e Portugal e mais de 10 textos encenados no teatro.


sobre outros dias – Mailson Furtado

pai carregava o sol toda manhã
de tanto e tanto
frestas rasgavam o trançado do chapéu
e tudo já era dormente
e tudo era ir e ir e ir
com a promessa do dia seguinte
pagar a vida inteira

ENTREVISTA

01 – O que significa ser Poeta na atualidade?

– Não sei se há alguma mudança no ser poeta hoje ou ontem. Ser poeta sempre foi uma experiência de imersão ao tempo-espaço da condição humana (ressignificando-a ou redescobrindo-a) que se emaranha a todas as nuances presentes a cada época. Por conta disso, o que talvez possa tornar uma experiência distinta no atual e no antes são esses elementos: a fluidez de tempo, as novas relações de trabalho, e tantas outras questões singulares a este momento.

Diante disso, no hoje, o ser-poeta firma ainda mais o existir, o re-existir na amplificação de toda uma subjetividade negada à pressa da certeza, da “verdade”, que esses dias tomam para persegui-las e tomá-las pelo braço. A poesia resiste a tudo isso.

02 – Qual é a sua visão sobre a produção poética contemporânea?

– O fazer literário acompanha e se alicerça nas nuances do tempo que se loca/lota. A produção contemporânea, desse modo, é plural, tanto em temática, estética, experimentação. E assim diz muito sobre este agora. Pessoalmente, sou admirador, inclusive é o que mais leio. E há algumas questões importantes a serem ditas sobre. Nunca se publicou tanto por vários motivos: internet, aumento de editoras, diminuição do processo burocrático do fazer-livro, entre outras questões, e por isso motivo, há muito mais coisas boas publicadas e há muito mais coisas ruins (ou possíveis) publicadas. No entanto, não cabe a mim tal julgamento, encontro isso em meus passeios como leitor (e claro essa culpa pode ser inclusive deste leitor, e não dxs autorxs). Diante de toda a produção contemporânea algumas questões me chamam atenção: a poesia de existência, como chamo, que são experiências onde o autor ou autora se colocam em carne-viva para trazer seus dizeres em espaços literários antes ditos por expectadores.

Hoje encontramos indígenas se dizendo a partir de suas aldeias, mulheres negras a narrarem suas próprias experiências, sertanejos distantes de uma elite a dizerem do Sertão, os Saraus e Slams a dizerem das periferias, entre outros exemplos. Tudo isso promove um re-descobrimento do próprio país e leva reflexões sobre qual o nosso lugar no mundo, de fato. Outro ponto, que gosto e experimento em minhas tentativas poéticas, é o hibridismo: o poema não ser só o poema, mas também vídeo, som, corpo, e por aí vai. No entanto, há também pontos muito presentes, que me incomodam, a principal delas: o uso excessivo e repetitivo de uma metalinguagem rasa, que desde sempre existe, hoje ainda mais. Mas nada que tire o brilho e a força dessa geração.

03 – Qual é a função social da poesia e do/a poeta na atualidade? Ele/a precisa ser atuante e se posicionar?

– Acredito na função social dx poeta como ressignificador da vida, e um “encrenqueiro” às objetivações. Quanto a questão de ser atuante ou não, já dizia Guimarães Rosa “pão ou pães, é questão de opiniães”, no entanto não acredito numa arte/artista inerte às condições sociais impostas, por melhores que sejam. O fazer do/da artista é reconstrução. Assim, o grito pode estar na obra artística, como pode estar no dizer de seu/sua criador/criadora.

04 – Inspiração ou transpiração: o que é mais importante na sua produção poética?

– Odeio a palavra inspiração, pra mim ela diz sobre algo que existe por si só, e não por um atravessamento de uma ideia a um/uma artista, que é como acredito esse processo. Uso mais o termo imaginação, mas creio que também não traduza seu cerne. Sou um artista alicerçado antes de tudo alicerçado em pesquisas, a partir dessas e doutros experimentos surgem sustos/surtos poéticos, e daí meu primeiro esboço de escrita, que logo mais é arduamente lapidada, no processo de transpiração. No entanto, apesar dos dois processos serem tão importantes quanto o que mais me entusiasma é o primeiro momento (que depende também de mim), embora o segundo seja onde mais fico.

05 – Quais são suas principais referências poéticas? Como elas acrescentaram na sua escrita?

– Tenho referências para minha tentativa poética nos mais diversos campos artísticos: literatura, música, teatro, e todas elas se somam para pensar meu fazer poético de uma forma mais ampla. Na literatura tenho zilhões de referências: a poesia popular nordestina, a poesia marginal, a geração beat, a poesia social dos anos 60/70, a geração de realismo fantástico latino-americano, a leva de romances distópicos do século XX, entre outras. No teatro: a dramaturgia do absurdo, do oprimido, o próprio movimento armorial Nordestino, o teatro popular de tradição. Na música: todo o movimento de rock’n roll psicodélico dos anos 60/70; o tropicalismo; a música folclórica, principalmente nordestina. Todas essas e outras influências se misturam e trazem reflexões sobre temas, ritmo e outras questões estéticas que me formam enquanto autor.

06 – Versos livres ou métricos? Linguagem coloquial ou erudita? Você diferencia poesia de poema? Como? Ainda há espaço para poemas líricos, clássicos e ditos “fixos”?

– Não acredito no termo verso livre, a não ser na experiência de derramamento verborrágico de fluxo contínuo lá da geração beat. Mesmo o verso “sem métrica” está preso a questões como ritmo, estrutura visual, sonora, entre outras, e isto não ser livre, é cumprir alguma busca estética. Por outro lado não acredito no termo forma fixa, já que a poesia se estende para além da métrica, rima ou oração. Acredito na intersecção dessas duas possibilidades, e é o que busco. É difícil definir isto, visto estarmos presos a objetivismos, mas a poesia não se enquadra nessa caixinha.
Quanto o embate poesia x poema tão presente desde sempre, entendo poesia com uma amplidão pra além da literatura e como uma inerência humana, necessária fundamentalmente à vida e presente na condição terrena de ser. Dentro dessa inerência, apresenta-se a arte em todas suas dimensões, como elemento mais palpável do destilar poesia à vida. E numa terceira dimensão ainda mais restrita, apresenta-se o poema, espaço possível em letras para busca da poesia, que pode ou não ser encontrada.

E quanto ao espaço dos poemas em relação à forma ou tema, a poesia é uma experimentação sem qualquer norma ou prazo de validade, e desde que não fira condições morais à vida, tudo pode, tudo deve.

07 – Por que você escreve?

– Porque quando menino não consegui respostas que me convencessem quanto à vida, quanto à mundo. Escrever foi uma descoberta e uma possibilidade de busca desses encontros, a priori para o dizer de um eu, para depois me enxergar como um construtor de mundo.

08 – Estamos historicamente em uma geração que busca “revisar” os acontecimentos do mundo e trazer à tona as versões oprimidas. Com isso, muitas obras clássicas passaram a ser criticadas, assim como seus autores. É possível separar os tempos e não associar esse passado à atualidade?

– Há casos e casos. Mas creio que esse paralelo obra/tempo precisam sempre ser analisadas. Junto disso a importância da mediação da leitura para a criação de leitores/leitoras críticos/críticas que entendam o livro para além de suas páginas.

09 – Como você vê a efervescência da poesia e o aparecimento de inúmeros poetas nas redes sociais? Esse aumento traz benefícios? Ajuda ou atrapalha? Aproxima a poesia das pessoas ou banaliza a qualidade de produção?

– Há prós e contra, sempre. Quanto mais gente aparecendo mais coisas boas e mais coisas ruins. A presença da poesia nos mais diversos espaços é necessário, não poderia ser diferente nas redes sociais, e esse espaço inventa muitxs leitorxs que não teriam acesso à literatura, que não por esse canal. Isso é maravilhoso. No entanto, aparece por cá a mesma importância da mediação de leitura, para que tais obras sejam caminho para outras, nisso ainda estamos devendo.

10 – Como poeta, de que maneira você acha que será lembrado/a um dia?

– A vida e o tempo que dirão isso, não sei o que virá nos próximos dias. E de fato nem busco isso, seria vaidade. Vivamos, que é o podemos fazer.


*Entrevista retirada do livro “Na Poesia Viva: A Poesia Contemporânea Em Frente e Verso”, de Igor Calazans, publicado pela Editora Viés, em 2020.