Por Amanda Azulay

No texto anterior da coluna Psicanálise e Poesia, comentamos sobre a importância da arte desde o início da elaboração da teoria psicanalítica. Começando pelo fenômeno do Complexo de Édipo, exploramos que a criança entra no processo simbólico ao se deparar com os limites de seu desejo. Portanto, podemos pensar que o encontro com a realidade, para Freud, é frustrante. Ao mesmo tempo, segundo o psicanalista, é justamente a frustração que leva o ser humano a construir a cultura e a arte, como uma forma de compensar a castração e suas renúncias. Outros grandes nomes da Psicanálise também se aventuraram a pensar na origem da cultura.

Hoje abordaremos o assunto a partir de Donald Woods Winnicott (foto), pediatra e psicanalista inglês e que ficou conhecido por concepções próprias sobre a natureza humana e por suas contribuições criativas e originais à Psicanálise.

ALGUNS CONCEITOS REVOLUCIONÁRIOS DE WINNICOTT

A partir da observação de bebês e suas mães, Winnicott indagou o fato da psicanálise ter se ocupado da problemática triangular, e, portanto, de pessoas inteiras que se relacionam com pessoas inteiras. Para ele, a existência do sujeito não se dá a priori, já que o bebê, inicialmente, só existiria inserido em um contexto de cuidado, ou seja, em um ambiente que atenda suas necessidades. Em outras palavras, ele propõe um longo percurso que ocorre até o bebê alcançar o senso de existir e a capacidade de perceber a existência de um outro, chegando ao início das relações objetais, ou seja, da relação com objetos internos e externos a si.

Por outro lado, ele havia constatado que desde o início da vida, o bebê tendia a certos maneirismos – como chupar o dedo – e, posteriormente, a fazer uso de objetos (como um paninho, um travesseiro ou um ursinho) que o auxiliavam a sair de um estado de ansiedade e retornar a um estado de tranquilidade. Assim, formulou o conceito de “fenômenos e objetos transicionais” propondo que entre a diferenciação de um mundo interno e um externo, entre o entendimento do que é subjetivo e do que é objetivo, haveria uma terceira área, ainda não considerada, que é de fundamental importância para a conquista do que ele entende como “o viver criativo”, autônomo e autêntico.

Essa área intermediária e de experimentação é a área transicional: a área do brincar. A partir dessa formulação, o pediatra reivindica o encontro com a realidade na dissolução do conflito edípico e propõe alternativas com o fenômeno da ILUSÃO, e posteriormente da DESILUSÃO. Para nos ajudar a entender essa ideia, convocaremos, simplesmente, Mario Quintana:

 

“DAS ILUSÕES” – Mario Quintana

Meu saco de ilusões, bem cheio tive-o.
Com ele ia subindo a ladeira da vida.
E, no entanto, após cada ilusão perdida…
Que extraordinária sensação de alívio!

Retornando a Winnicott, sua teoria sugere que a vida começa num estado de dependência absoluta no qual o bebê e a mãe encontram-se numa relação de fusão que confere uma comunicação mútua. Assim, ao enfatizar a importância do ambiente para a maturação do sujeito, o psicanalista postula o conceito de “mãe suficientemente boa” para se referir a adaptação ativa e completa que ela deve proporcionar ao bebê, satisfazendo suas demandas e propiciando a experiência de um controle mágico e onipotente.

Para exemplificar, a ideia é a seguinte: o bebê está ali, descansando, num estado tranquilo, até que começa a sentir um incômodo – fome, por exemplo – e por conta da excitação e dos seus impulsos, vai em busca de algo que o satisfaça. A mãe, por empatia, sabe que o bebê busca o seio, e o colocará à disposição no momento exato em que ele buscou. O bebê terá a experiência prazerosa da amamentação e voltará ao estado de tranquilidade.

Winnicott vai dizer que diante da sua necessidade o bebê terá uma experiência alucinatória, que faz parte da sua fantasia: ter criado o seio. Em relação a isso, o psicanalista pontua que não há uma razão em resolver o paradoxo: “Você criou o seio ou já estava lá? ”. O que importa é o que acontece nesse momento, a experiência, a possibilidade do bebê ser criativo a partir da ilusão de haver uma realidade externa correspondente à sua capacidade de criação. Ao mesmo tempo, ele é abastecido com o enriquecimento de elementos reais, o seio da mãe. Trata-se de proporcionar ao bebê, a partir da repetição da experiência, a crença de que ele pode criar e recriar o seio quantas vezes forem necessárias, e, portanto, da construção de um mundo subjetivo.

No caminho em direção à maturidade, a mãe, que já pôde proporcionar essa experiência de confiança e de potencial criativo ao bebê, enchendo – o de experiências de criatividade, das ilusões – nas palavras de Quintana: “Meu saco de ilusões, bem cheio tive-o” – gradualmente, passará a colocar sua atenção em outros interesses. Assim, o objeto que era criado por ele não estará mais disponível a qualquer momento e ele lidará com a frustração de não ter mais o controle mágico da situação. De acordo com o psicanalista, é isso que o impulsionará ao encontro de uma realidade compartilhada e a se relacionar com objetos externos.

O ALÍVIO DA REALIDADE

Para auxiliar nessa passagem de um mundo criado subjetivamente ao reconhecimento e percepção de um mundo objetivo, os objetos transicionais – como dissemos, podem ser um paninho, um ursinho ou a fronha de travesseiro – dependerão do espaço que a mãe dará para que o bebê tenha a experiência de um espaço potencial. Eles fazem parte da área transicional, comentada anteriormente, na qual se aceita o paradoxo de ser interno e externo paralelamente, e serão fundamentais para que o bebê transfira ao objeto a frustração de não ter o controle onipotente sobre a mãe. É isso que o levará ao reconhecimento de sua autonomia.

Em outras palavras, a experiência da criação proporcionada pela ilusão, e a desilusão, que proporcionou o uso criativo dos objetos no brincar da criança pequena se estenderá à vida adulta, ao trabalho, à produção das artes, da filosofia, das religiões, da cultura e de um viver criativo. Por isso que, para Winnicott, o encontro com a realidade é um alívio. Porque somente em mundo REAL, com seus limites, é possível SENTIR-SE REAL. Como o poeta escreveu: “E, no entanto, após cada ilusão perdida… Que extraordinária sensação de alívio!”.

*Amanda Azulay é Psicóloga formada pela Universidade Santa Úrsula, do Rio de Janeiro. Ela assina, todas as quintas-feiras, a coluna “Poesia e Psicanálise”.

Referências:
WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975
Mario Quintana: Quintana de Bolso. Porto Alegre. L&PM, 2006