Agenor de Miranda Araújo Neto, mais conhecido como Cazuza, nasceu no Rio de Janeiro, a 4 de abril de 1958. Um dos mais icônicos artistas do rock brasileiro, é visto como um dos principais “poetas compositores” do país, tendo músicas cantadas e aclamadas até hoje pelos fãs e pela crítica. No entanto, pouco ainda se notava sobre a parte “apenas” literária de seus poemas. Ele mesmo admitia certa inibição em mostrá-la, por não ter tido boa repercussão entre amigos escritores. Contudo, ele deixou uma gama de textos que vem sido publicados e que provam a sua faceta também como literato.

Vocalista da Banda Barão Vermelho, no início da década de 80, Cazuza atingiu o estrelato por sua forma única de cantar e estilo de vida rebelde, boêmio e artístico. Quem o conheceu pelas praias e bares do Rio de Janeiro, diz que ele era um ávido leitor, tanto de poemas, como de literatura clássica. Nomes como Allen Ginsberg , Arthur Rimbaud e Carlos Drummond de Andrade, viviam na cabeceira do poeta. Na música, foi muito amigo de nomes como Caetano Veloso, Elis Regina, Gal Costa, Gilberto Gil, João Gilberto e dos Novos Baianos, além de uma relação amorosa como o cantor Ney Matogrosso. Em julho de 1985 decidiu seguir carreira solo. Suspeita-se que nesse mesmo ano ele começou a ter febre diariamente, indícios da AIDS que se agravaria em 1987.

Cazuza faleceu na manhã do dia 7 de julho de 1990, em seu apartamento em Ipanema, Rio de Janeiro, aos 32 anos.

Algumas pessoas são mais felizes que as outras

Algumas pessoas
são mais felizes que as outras
Puxam conversas nos elevadores
Cantam na rua, mexem com as garotas
Avisam que o endereço tal não existe

Algumas pessoas são mais felizes que as outras
Não sei por quê, ninguém nunca me disse
Algumas pessoas são mais felizes que as outras
Estão sempre rindo, não escondem isso

E bebem muito
Mas sem chatear
Têm sempre um novo caso pra contar

Algumas pessoas
São mais felizes que as outras
Se adaptam à vida
São superiores

Algumas pessoas
Diluem suas dores
No cotidiano, ativas
Se expondo no elevadores
Cantam na rua, mexem com as garotas

Algumas pessoas
Vivem comemorando
Se a vida é triste

Todo dia é
Na rua
Apressam numa boa
Avisam que o endereço tal
não existe

São superiores
Puxam conversa nos elevadores
Cantam na rua, mexem com as garotas

Manhãs de ressaca

Minha cabeça é pequena e pesada
Como uma pedra
(principalmente em manhãs de ressaca)

Eu sou uma pessoa comum
Que sofre por coisas comuns
Como qualquer caixa das Casas Sendas
Que nunca pensou na morte
E acredita um dia poder ser feliz
Materialmente

Sonhos novos
Amigos antigos
Vodca.
Pra temperar, gargalhadas gostosas
Acrescentar pequenos momentos de silêncio
Movimentos sérios de mãos
Esperar o troco.

Entre livros

Nunca mais hei de esquecer
aquela velha biblioteca onde,
entre livros, vi você
a estudante mais séria e bela.

Nunca mais hei de esquecer sob
aquele par de óculos
o ar responsável de seus
olhos
que me fez parar de ler.

Nunca mais hei de esquecer aquele livro
de Medicina
que você lia com olhos de saber
folheava com dedos de menina.

Nunca mais hei de esquecer meu
ciúme daquele livro tão cúmplice
de você
que em livro até me viro.

Nunca mais hei de esquecer quando do
livro despertou
o seu olhar me notou
você também parou de ler.

Nunca mais hei de esquecer de
estudar só com você
naquela velha biblioteca
onde, entre livros, você tão bela.

Quando te vi frente a frente

esqueci a raiva
te convidei
pra tomar
sorvete
porque te olhar
e ser teu inimigo
pode não ter
o menor sentido
quando eu
lembrei
do que foi ruim
o que não deu
pra rir junto
quando me vi
com armas
nas mãos
me assustei
porque
era poder
te quero assim
e é muito difícil
você sabe
é muito difícil

Aí você pintou…

Aí você pintou uma parte simpatia (hic!)
outra aquela garrafa de uísque que enxugamos juntos (eh!)
e vento, também, que a gente conhece um pouco a vida.

“Você parece um trator quando fica me chamando de amigão”

então zás-trás big boss vamos ver as borboletas vermelhas

atrás das persianas Columbia e dos Oceanos Atlânticos
assim eu não preciso ficar jogando pedras na lua sozinho
nem babando nos muros do vizinho que só sabe ficar
repetindo o que o Cid Moreira também já babou
naquela tela das oito (até as quinze pras nove).

Fracasso

O fracasso parece nome de perfume
Daqueles ocres vagabundo
E ninguém está pronto a dizer:
“Sou um fracassado”
Aos 20 anos, estudante
O pior da sala, mas o mais aplicado
Depois os empregos vão mudando:
“O meu patrão não tá com nada”
“Esse trabalho não é pra mim”
Se chega aos 30
Ainda morando em casa
A criança grande do fracasso
Às vezes pretensiosos e invejosos
Mas eu tenho a impressão
Que todos nós somos fracassados
Eu, por exemplo: não amo…

Work in progress

rosqu’enrola comigo a noite toda e diz sim à trovoada que te caça
você irmã de bem selvagem, mal selvagem, ou que moral possa ter
a natureza divina dos teus atos falhos.
(um rock desde já me assalta pra acabar com esse papo furado)
agora a eletricidade enlouqueceu, os loucos que fujam e falem
ou mudos encarem urgentemente qualquer bobagem colorida
que a minha espinha é uma guitarra explorando mares que as próprias
ondas
vão avançando sem nunca ter pensado
um coração que bata na porta do caralho
será que o jimi curtia lobster? Scorpio no céu do norte? lã…
que grande poder tem a raiva amplificada em não sei quantos mil watts,
e viver fosse alcançar o céu num raio, um menino e sua pipa mesmo que fosse
pleno polo sul e a lua, uma das luas de marte
“que mal em um bêbado brincando de criar palavras próprias?”
em rum poderaste foder-te em finíssimas larvas de possível realidade! feliz
cidade e jogos de cantarolar o que no fundo achas
e que abacate no mínimo solta o intestino!

resta esperar que mudem os tempos e que apaguem as mentiras feito
apagar a cidade às seis da manhã e te ter luz, mas é mentira, aí é mentira
porque faltam os quilômetros e as lágrimas que não merecem ser
derramadas
as sementes de muito antes pensar em plantar “é bem assim a natureza
.                                                                                                             da minha alma”
é bem assim que te mordo o calcanhar e rosno e lato & mato qualquer um
você não é nada mais que um cachorro doido uivando da janela de um apartamento
de costas pro sol de frente pra rua & transeuntes
que dificilmente hão de se abalar com cheiro de perigo iminente
combustão de cor – o sal por baixo de todas as capas de asfalto –
esta cidade foi construída sobre uma grande salina.
todo o teu poder só depende agora de acender cigarros
e não existe mais dor mas o fascínio de ir até o esgoto e imaginar
arco-íris e pedras coloridas ao redor do caminho – caio de andar ao léu
no teu parque de stop siga sangue e rima
não até agora ainda busco vida além dar pra tua vida motivo de alegria
melhor gozar sozinho gritando deus aqui está o vão dos sentidos
como no improviso todo em que sobraram dois minutos engraçados
contaminados com o monte de coisas feias que daqui de cima
fazem parecer bela esta cidade

continuo. como um breque de blues continua o solo da guitarra saindo antes
.                                                                                                                                  da hora
e pedais. gasolina queimando a barra de várias saias de saturno

não caminhas a maioria dos carros atropelando moscas folhas e passarinhos? não
continuam os eternos mapas dos contínuos pelo centro da cidade? continuar parece
fácil pra quem não tem qualquer mandado além dos horários de frágeis elucubrações
mentais. muito obrigado
nuvem escura que me brilha nos olhos é parte do passado escuta um pouco só:
chove, faz sol, ainda não mudou nada.
eu quero assim, marcado: agora pra cá e nunca mais vou voltar igual de novo, nunca
mais o mesmo ah preso no teu sexo para sempre
no escuro que nem você viu um dois com passo de quem soube a vida inteira como
faz na vida e como se termina – uh uh uh fera doida de cansaço
só falta um lapso de memória pra ser um estranha existência em outra nave

continuo. como um braque de blues continua o solo da guitarra
a eletricidade continua e queria distorcer também a vida com um pouco
.                                                                                                     de uísque. e pedais.
os carros não parecem estar sempre atropelando moscas folhas e passarinhos
os contínuos não continuam nada mas estão sempre zanzando pelo centro
da cidade o que é mais interessante do que ser continuísta, por exemplo
é ter que viver continuando, eu paro agora se quiser e jogo uma tarde
inteira fora olhando paredes e só volto se uma frágil elucubração mental
me desiquilibrar no picadeiro e me der medo de morrer.
mas essa de nuvem negra nos olhos, criança, é coisa do passado
.                                                                                                      escuta um pouco só: chove
faz sol, ainda não mudou nada.
espere então que mudem os tempos e se apaguem as mentiras feito
apagar a cidade às seis da manhã e ter só você de luz,
mas é mentira ainda, é mentira ainda porque não somos selvagens e
temos milhares de lágrimas que não merecem ser derramadas
as sementes de muito antes pensar em plantar “é bem assim a natureza
.                                                                                                             de minha alma”
por isso é que eu te mordo o calcanhar  e rosno e lato e aceito qualquer som

Eu tenho todo azul

Eu tenho todo azul que eu quiser
e também tenho o medo em segredo, mas bem que podiam ter me
dito antes que é tão bom chocolate quente
na memória da vovó dos sábios e dos crentes (parece
junkies sempre de manga cumprida)

ALÔ, MAMÃE!
tô chegando na minha asa-delta de papel
catando todos os poemas amassados
em todas as latas de lixo do mundo
feliz, feliz porque eu já posso ser demente
cruzei de olhos vendados todas as rodovias do continente!
Daí fiquei tão livre e tão urgente (pão com manteiga)
QUE POSSO PARAR O TEMPO E VIRAR UM ANJO AGORA
Virar um louco furioso solto
em território de bandidos loucos também, lindos também
escutando as mesmas rádios e os mesmos conselhos cósmicos das
estrelas (e esse cheiro de merda na lagoa…)

Jogo de vôlei

Estou na praia no jogo de vôlei
De homens alados que voam atrás de uma bola
E são felizes assim
Estou na Aníbal de Mendonça, Ipanema
O povo grita. O povo é lindo.
Foram criados com a melhor manteiga
Com as melhores frutas e agruras do destino
Quero enlouquecer, quero esquecer
Eu não estou cabendo no mundo
Em todo lugar eu sou um estranho. Me ajudem
Tomei uma vodca. Melhorei
Os médicos não entendem de magia
Iemanjá me repreendeu
Me deu um tapa na onda que eu mergulhei
Não foi surpresa nenhuma
Quebrei um copo com uma palavra

Experiência

Antes de pegar este aviãozinho
Tenho que te provar alguma coisa

Eu tentei, não consegui porque
Tem coisas
Que a gente não consegue vencer mesmo

Vou pra outras plagas
Ver se esta minha doença passa
E seu eu posso rapidinho
Ter o destino como o de todo mundo

*Poemas do livro “meu lance é poesia”, Editora Martins Fontes, 2024.