Por Igor Calazans

Cecília Meireles, Hilda Hilst, Ana Cristina Cesar, Conceição Evaristo… Quando falamos em mulheres da poesia brasileira, essas referências logo aparecem como exemplos. E, claro, é justíssimo pensarmos nelas, já que suas obras atravessam os tempos, superando historicamente um espaço na literatura até então reservado aos homens. Mas, além delas, existem outras tantas poetas importantes e que deveriam ser muito mais lembradas, mas, infelizmente, ainda passam despercebidas. É para isso que estamos aqui!  Separei, abaixo, 20 grandes poetas brasileiras que marcaram suas vozes e que merecem ser exaltadas. Confira!

01 – NÍSIA FLORESTA (1810 – 1885)

Nísia Floresta Brasileira Augusta, pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto, nasceu em Papari, Rio Grande do Norte, cidade que atualmente leva o seu nome. Poeta e educadora, é considerada a primeira voz feminista na literatura do país, por defender os direitos das mulheres, principalmente em relação à educação científica, abrindo portas para que meninas pudessem frequentar escolas e universidades. Também participou ativamente das campanhas abolicionistas e republicanas a favor dos povos indígenas e negros.

IMPROVISO

ao distinto literato e grande poeta,
Antônio Feliciano de Castilho

Vate sublime, que os primeiros sonhos
Da juventude minha hás embalado,
Quando às margens do fresco Beberibe
Os teus primores d’arte eu decorava
Às ilusões entregue dessa idade,
Em que os risos de amor tanto seduzem!
Tu nos deixas enfim! e as plagas nossas
Ao verem-te sair gemem saudosas;
Gemem os corações dos brasileiros,
Que como meu reter-te não puderam
Nesta terra que ufana te incensara
Se o gênio aqui tivesse um templo seu!
Inclina triste a fronte, ó pão-de-açúcar,
Ao poeta que passa! ao gênio deve
A matéria imponente assim curvar-se.
Embalde indiferente ela se ostente,
A grande inteligência, que mar afora
Lá se vai!…nos corações nossos deixando
Da pungente saudade a dor acerba!

02 – MARIA FIRMINA DOS REIS (1822 – 1917)

Nascida em São Luís, capital do Maranhão, é considerada a primeira romancista negra do Brasil. Publicou, em 1859, o livro “Úrsula”, romance abolicionista que conta a história de um triângulo amoroso no qual os personagens são pessoas negras que contestam o sistema escravocrata. Aos 54 anos e com mais de 30 anos dedicados ao magistério, fundou, na pequena cidade de Maçaricó, uma escola mista, onde dava aulas para crianças que não podiam pagar. Como poeta, sob influência parnasiana, escrevia “escrevivências” sobre as condições dos negros no país.

AH! NÃO POSSO

Se uma frase se pudesse
Do meu peito destacar;
Uma frase misteriosa
Como o gemido do mar,
Em noite erma, e saudosa,
De meigo, e doce luar.
Ah! se pudesse!… mas muda
Sou, por lei, que me impõe Deus!
Essa frase maga encerra,
Resume os afetos meus;
Exprime o gozo dos anjos,
Extremos puros dos céus.

Entretanto, ela é meu sonho,
Meu ideal inda é ela;
Menos a vida eu amara
Embora fosse ela bela.
Como rubro diamante,
Sob finíssima tela.

Se dizê-la é meu empenho,
Reprimi-la é meu dever:
Se se escapar dos meus lábios,
Oh! Deus, – fazei-me morrer!
Que eu pronunciando-a não posso
Mais sobre a terra viver.

03 – JÚLIA LOPES DE ALMEIDA (1862 – 1934)

Nascida no Rio de Janeiro, a poeta é umas das mais representativas escritoras da literatura brasileira. Com uma vasta obra, entre poemas, romances e peças teatrais, é considerada pioneira da literatura infantil no Brasil, com a publicação do livro “Contos Infantis”, em 1886. Muito presente no círculo intelectual da época, participou da criação da Academia Brasileira de Letras (ABL), contudo ficou de fora da lista dos primeiros “4o imortais”, já que os fundadores optaram seguir o modelo da Academia Francesa que garantia as cadeiras exclusivamente para homens. Curiosamente em seu lugar foi escolhido o seu marido, o também poeta Filinto de Almeida. Em 1919, foi eleita presidente honorária da Legião da Mulher Brasileira, sociedade que lutava pelos direitos civis das mulheres, além de temas Republicanos contra as estruturas de escravidão.

A LARANJEIRA

Perfumada laranjeira,
Linda assim dessa maneira,
Sorrindo à luz do arrebol,
Toda em flores, branca toda
– Parece a noiva do Sol
Preparada para a boda.

E esposa do Sol, que a adora,
Com que cuidados divinos
Curva ela os ramos, agora!
E entre as folhas abrigados,
Seus filhos, frutos dourados,
Parecem sois pequeninos.

04 – FRANCISCA JÚLIA (1871 – 1920)

Nascida na cidade de Eldorado Paulista. São Paulo, foi considerada a principal “poeta parnasiana” de sua geração. Constantemente elogiada por Olavo Bilac, um dos idealizadores deste movimento no Brasil, teve relativo sucesso com obras caracterizadas pela beleza estética, linguagem objetiva e rigor formal. Recebeu, com isso, o apelido de “musa impassível”, título de um de seus poemas. Por outro lado, foi constantemente acusada de plágio com a poesia do cubano José María de Heredia. Por vários anos também levantaram a hipótese de Francisca Júlia ser apenas pseudônimo de algum poeta homem. Já no final de sua trajetória literária filiou-se ao simbolismo, produzindo poemas que indicavam uma visão mística da realidade. Francisca Júlia também mostrou preocupação com a educação literária de meninas e meninos. Em 1902, ela foi uma das fundadoras da revista Educação.

OUTRA VIDA

Se o dia de hoje é igual ao dia que me espera
Depois, resta-me, entanto, o consolo incessante
De sentir, sob os pés, a cada passo adiante,
Que se muda o meu chão para o chão de outra esfera.

Eu não me esquivo à dor nem maldigo a severa
Lei que me condenou à tortura constante;
Porque em tudo adivinho a morte a todo instante,
Abro o seio, risonha, à mão que o dilacera.

No ambiente que me envolve há trevas do seu luto;
Na minha solidão a sua voz escuto,
E sinto, contra o meu, o seu hálito frio.

Morte, curta é a jornada e o meu fim está perto!
Feliz, contigo irei, sem olhar o deserto
Que deixo atrás de mim, vago, imenso, vazio…

05 – AUTA DE SOUZA (1876 – 1901)

Nascida em Macaíba, Rio Grande do Norte, Auta chegou a ser considerada a maior “poeta mística do Brasil”, fazendo parte da segunda geração romântica do país. Especialista em sonetos, venceu a resistência dos círculos literários masculinos apresentando poemas de alto valor estético e profundas influências simbolistas. Poetas como Olavo Bilac, que escreveu o prefácio de “Horto”, único livro da autora, e Mário de Andrade, fizeram questão de exaltar a obra da poeta. Órfã de pai e mãe, Auta foi criada por sua avó materna em Recife, Pernambuco. Com apenas 14 anos começou a apresentar problemas de saúde, diagnosticada com tuberculose. A reclusão fez com que a poeta aprofundasse seus estudos literários, passando a escrever poemas religiosos, familiares e existencialistas. No início dos anos 2000, a Federação Espírita Brasileira voltou-se muito à sua vida. Chico Xavier, por exemplo, psicografou sonetos atribuídos ao espírito da poeta.

NOITES AMADAS

Ó noites claras de lua cheia!
Em vosso seio, noites chorosas,
Minh’alma canta como a sereia,
Vive cantando n’um mar de rosas;

Noites queridas que Deus prateia
Com a luz dos sonhos das nebulosas,
Ó noites claras de lua cheia,
Como eu vos amo, noites formosas!

Vós sois um rio de luz sagrada
Onde, sonhando, passa embalada
Minha Esperança de mágoas nua…

Ó noites claras de lua plena
Que encheis a terra de paz serena,
Como eu vos amo, noites de lua!

06 – GILKA MACHADO (1893 – 1980)

Carioca de nascimento, Gilka foi pioneira na escrita da poesia erótica do Brasil. Frequentemente associada ao simbolismo, rompeu os padrões da sociedade expondo a sexualidade feminina. Por conta disso, os críticos literários da época lhe apelidaram de “matrona imoral”. Por outro lado, muitos poetas admiravam seus versos, como, por exemplo, Carlos Drummond de Andrade, que a descreveu como “a primeira mulher nua da poesia brasileira”. Durante a sua juventude, lutou pela representatividade política feminina, participando, em 1910, da fundação do Partido Republicano Feminino, cujo principal objetivo era o direito de voto das mulheres.

SER MULHER…

Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida, a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior…

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um Senhor…

Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais…

Ser mulher, e oh! Atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!

07 – HENRIQUETA LISBOA (1901 – 1985)

Mineira de Lambari, Henriqueta é nome importante da Geração 45, terceira fase do movimento modernista brasileiro. Primeira mulher eleita para Academia Mineira de Letras, em 1963, é dona de diversas honrarias literárias, como o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1984. Apesar da figura doce e comedida, a sua obra poética apresentava uma personalidade forte e imponente. Em uma época em que pouco se falava em feminismo no Brasil, ela já fazia diversas críticas à sociedade e lutava pela igualdade de gêneros. Para ela, por exemplo, a denominação “poetisa” era uma afronta masculina para diminuir o papel da mulher na literatura. Ela só admitia ser chamada de “Poeta”. Além dos poemas, Henriqueta Lisboa produziu várias traduções, ensaios e antologias. Ela traduziu, por exemplo, os Cantos de Dante Alighieri, além de poemas de Gabriela Mistral.

NOTURNO

Meu pensamento em febre
é uma lâmpada acesa
a incendiar a noite.

Meus desejos irrequietos,
à hora em que não há socorro,

dançam livres como libélulas
em redor do fogo.

08 – LILA RIPOLL (1905 – 1967)

Nascida em Quaraí, no Rio Grande do Sul, Lila Ripoll foi poeta e pianista. Uma das vozes femininas mais importantes de sua geração, fez parte da chamada “Geração de 30” de escritores, artistas e intelectuais porto-alegrenses, tais como Carlos Nejar e Armindo Trevisan. Publicou diversos livros entre poemas, ensaios e traduções. Venceu prêmios importantes no Brasil, como o “Olavo Bilac”, concedido pela Academia Brasileira de Letras, em 1941.  Após a morte de seu primo, o jornalista Waldemar Ripoll, assassinado por ordem de pessoas ligadas ao governador Flores de Cunha, Lila passa a engajar-se politicamente, principalmente nas causas trabalhistas. Chegou a se candidatar pelo Partido Comunista, em 1950, mas não foi eleita vista como “subversiva”. Logo após o golpe militar de 1964, Lila foi presa, mas libertada em função de sua saúde — sofria de um estado avançado de câncer.

GRITO 

Não, não irei sem grito.
Minha voz nesse dia subirá.
E eu me erguerei também.
Solitária. Definida.
As portas adormecidas abrirão
passagem para o mundo
Meus sonhos, meus fantasmas,
meus exércitos derrotados,
sacudirão o silêncio de convenção
e as máscaras de piedade compungida.
Dispensarei as rosas, as violetas,
os absurdos véus sobre meu rosto.
Serei eu mesma. Estarei
inteira sobre a mesa.
As mãos vazias e crispadas,
os olhos acordados,
a boca vincada de amargor.
Não. Não irei sem grito.
Abram as portas adormecidas,
levantem as cortinas,
abaixem as vozes
e as máscaras —
que eu vou sair inteira.
Eu mesma. Solitária.
Definida.

09 – ADALGISA NERY (1905 – 1980)

Nascida na cidade do Rio de Janeiro, foi poeta e jornalista. Fez parte das gerações modernistas do país. Casou-se aos 16 anos com o  pintor Ismael Nery. Após a morte do marido, em 1934, passou a trabalhar em jornais e também iniciou carreira política, sendo eleita deputada por três vezes, no entanto, acabou cassada em 1969. A partir da década 70 passou a apresentar fortes traços de depressão, isolou-se das pessoas, ficou pobre e viveu de favor na casa do amigo Flávio Cavalcanti, um dos mais importantes comunicadores da época, em Petrópolis, região serrana do Rio. Em relação à sua obra literária, a maior parte de seus escritos aconteceram entre as décadas de 30 e 50. Nesse período, mostrava um pensar profundo sobre as questões da vida e da morte, o ser mulher, e as relações com Deus, num campo lúdico, filosófico e extremamente sentimental.

PATRIMÔNIO

Pesam nos meus ossos
Os meus pensamentos,
Choram nos meus olhos
As visões neles crescidas,
Soluçam no torpor das minhas carnes
Ancestrais desalentos.

Sangram os meus pés
Na inútil andança
Da imaginação liberta,
Pulveriza o meu espírito
A solidão do suicida ignorado
E cresce assustadoramente dentro de mim
A calmaria que precede o fim.

10 – HELENA KOLODY (1912 – 2004)

Paranaense da cidade de Cruz Machado, Helena Kolody  foi poeta, escritora e uma das mais importantes educadoras de sua região. Eleita para a Academia Paranaense de Letras (APL), destacou-se como a primeira mulher a publicar haicais no Brasil, em 1941. Pelo conjunto da obra, em 1993, foi homenageada pela comunidade nipónica brasileira com o título de “haicaista”. Admirada por muitos escritores da época, influenciou grandes poetas curitibanos a ingressarem mais profundamente nos estudos das poéticas japonesas. Paulo Leminski, por exemplo, com quem teve próxima relação de amizade, foi um de seus principais “pupilos”.

POESIA MÍNIMA

Pintou estrelas no muro
e teve o céu
ao alcance das mãos.

11 – DORA FERREIRA DA SILVA (1918 – 2006)

Nascida em Conchas, São Paulo, Dora foi poeta e uma das mais importantes tradutoras do país. Casada com o Filósofo Vicente Ferreira da Silva, traduziu obras de grandes nomes da literatura, como Rainer Maria Rilke, além do psicólogo suíço Carl Gustave Jung. Escreveu 20 livros e venceu diversos prêmios, como o Jabuti, por três vezes, e o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letas, em 1999. Na década de 60, ao lado do marido, fundou as revistas Diálogo e Cavalo Azul, que priorizavam as publicações poéticas. Ativista cultural, por anos organizou tertúlias literárias em sua casa, recebendo novos e consagrados poetas da geração. O acervo pessoal da autora está sob tutela do Instituto Moreira Salles.

CIDADE

Aqui se cava um túnel:
poço sem água, serpente do vazio.
Passos na terra negra.
Homens golpeiam, dorso arqueado,
braços de veia túmidas.

O mundo se aperta, a vida engorda,
muito. A erva insiste nas frestas,
no capim nascem estrelas de ouro.
Dois velhos serram um tronco,
longo trabalho, um de cada lado.

No espaço, a mesma lua, magro perfil.
Gente rente ao chão, tristeza nos farrapos.
Faróis ferem a tarde que se abate.
Iminente a noite e as frias luzes
de tantas possíveis palavras.

Silêncio: muda é a melancolia e sua ronda.

12 – DEBORAH BRENNAND (1927 – 2004)

Nascida em Engenho do Ramo, município de Nazaré da Mata, Deborah Brennand é uma das mais importantes poetas pernambucanas da história. Casada com o famoso escultor Francisco Brennand, fez parte do movimento armorial, liderado por Ariano Suassuna, entre as décadas de 60 e 70. Esse grupo, composto por artistas e intelectuais da região, foi responsável pela renovação da literatura e da arte nordestina, expandindo a cultura da região por todo o país. Trazendo muita imagens e significações, a obra poética de Deborah caracterizou-se como órfico-mítica, onde o poeta se assume como um nova Orfeu.

DE AMARELO

Hoje devo me vestir de amarelo:
espantar os olhos negros da solidão,
tal a luz do girassol de ouro dourado
que abre pétalas iluminando nuvens.

Quem saberá (nem ela mesma) o artifício
usado para enganá-la? Sonhos? Jardins?
Não digo. Hoje me visto de amarelo
e vou, nos ramos, entoar da ave o canto.

Quero espantar olhos de solidão
que vem das grutas e abandona montes
para comer a relva rubra do meu coração.
Mas hoje, de amarelo, espantarei a fera

Fugindo, à procura de outra vítima:
Quem sabe, a mata?

13 – ZILA MAMEDE (1928 – 1985)

Embora tenha nascido na Paraíba, no município de Nova Palmeira, Zila Mamede é considerada a a maior poeta potiguara de todos os tempos. Isso porque, ainda criança, foi morar em Natal, capital do Rio Grande do Norte, onde cresceu, formou-se, e iniciou carreira literária. Para muitos críticos da época, inclusive Manuel Bandeira, Zila era a maior “versadora” do país. O seu poema “Elegia”, por exemplo, ganhou notoriedade internacional, colocando o seu nome no patamar mais elevado da nossa literatura. Também atuou com destaque como bibliotecária, sendo responsável por restaurar importantes bibliotecas durante a década de 1950, como a Biblioteca Central da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que hoje tem seu nome, e a Biblioteca Pública Estadual Câmara Cascudo. Aficionada pelo mar, sua maior inspiração poética, concidentemente morreu afogada na Praia do Meio, em Natal.

ELEGIA

Não retornei aos caminhos
que me trouxeram do mar.
Sinto-me brancos desertos
onde as dunas me abrasando
tarjam meus olhos de sal
dum pranto nunca chorado,
dum terror que nunca vi.

Vivo hoje areias ardentes
sonhando praias perdidas
com levianos marujos
brincando de se afogar,
com rochedos e enseadas
sentindo afagos do mar.

Tudo perdi no retorno,
tudo ficou lá no mar:
arrancaram-me das ondas
onde nasci a vagar,
desmancharam meus caminhos
– os inventados no mar:
depois, secaram meus braços
para eu não mais velejar.

Meus pensamentos de espumas,
meus peixes e meu luar,
de tudo fui despojada
(até das fúrias do mar)
porque já não sou areias,
areias soltas de mar.
Transformaram-me em desertos,
ouço meus dedos gritando
vejo-me rouca de sede
das leves águas do mar.

Nem descubro mais caminhos,
já nem sei também remar:
morreram meus marinheiros,
minha alma, deixei no mar.

Pudessem meus olhos vagos
ser ostras, rochas, luar,
ficariam como as algas
morando sempre no mar.

Que amargura em ser desertos!
Meu rosto a queimar, queimar,
Meus olhos se desmanchando
– roubados foram do mar.
No infinito me consumo:
acaba-se o pensamento.
No navegante que fui
sinto a vida se calar.

Meus antigos horizontes,
navios meus destroçados,
meus mares de navegar,
levai-me desses desertos,
deitai-me nas ondas mansas,
plantai meu corpo no mar.
Lá, viverei como as brisas.
Lá, serei pura como o ar.
Nunca serei nessas terras,
Que só existo no mar.

14 – OLGA SAVARY (1933 – 2020)

Olga Savary nasceu em Belém do Pará. Além de poeta, ela também foi contista, novelista, crítica e tradutora, tendo traduzido mais de 40 obras, principalmente de escritores hispano-americanos, como Jorge Luís Borges, Julio Cortázar, Pablo Neruda e Octavio Paz. Ficou nacionalmente conhecida por ter sido a primeira mulher a lançar um livro inteiramente dedicado a poemas eróticos. Com 20 publicações na carreira, recebeu o Prêmio Jabuti, em 1971. A obra poética de Olga Savary caracteriza-se pela concisão, formas breves e metros curtos. Escrevendo pequenas elegias e também haicais, grande parte de seus poemas exploram os elementos da natureza, além da essência da mulher. Muito dos seus livros são, até hoje, objetos de teses, adaptações e também foram musicadas por compositores eruditos e da MPB, em discos e CD.

ÁGUA ÁGUA

Menina sublunar, afogada,
que voz de prata te embala
toda desfolhada?

Tendo como um só adorno
o anel de seus vestidos,
ela própria é quem se encanta
numa canção de acalanto
presa ainda na garganta.

15 – LÉLIA COELHO FROTA (1938 – 2010)

Nascida no Rio de Janeiro, Lélia dedicou-se à cultura durante toda a vida. Museóloga, crítica e curadora de arte, poeta, tradutora e antropóloga brasileira, foi autora de diversos livros que focavam estudos e pesquisas sobre as manifestações artísticas populares. Mãe do autor de telenovelas João Emanuel Carneiro, trabalhou como diretora do Instituto Nacional do Folclore da Funarte, atual Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP) do Iphan. Também foi presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e diretora do Arquivo Geral do Rio de Janeiro. Venceu o Prêmio Jabuti em 1979 e o prêmio Olavo Bilac, em 1978.

AD USUM

O meu ofício é de palavras
que só estremecem ao rumor
do amor.

O meu ofício é de missão
secreta, sob a capa do ar:
lembrar.

O meu ofício desconhece
qualquer das formas de folgar:
sonhar?

No meu ofício é que se aprende
por dentro – terra e ultramar –
a olhar.

Sua alegria é de um minuto
e nada a pode compensar:
cantar.

Entre um minuto e outro perpassam
nuvens de tamanho esperar:
durar.

O meu ofício é de saber
morrer, de nas pedras gravar:
passar.

16 – ORIDES FONTELA (1940 – 1998)

Nascida em São João da Boa Vista, São Paulo, Orides é uma das mais representativas poetas do país na segunda metade do Século XX. Obteve diversos prêmios durante sua trajetória, inclusive o Jabuti de Poesia, em 1983 e o da Associação Paulista dos Críticos de Arte, em 1996. Trabalhou como professora primária e bibliotecária em várias escolas da rede de ensino São Paulo. A obra de Orides Fontela repercute até hoje como um importante lastro para o modernismo brasileiro. Em tom, na maioria das vezes, confessional, ela, em poucas palavras, encontrava a precisão específica para abordar sua verdade multiplica e possibilidades de interpretação. Orides atravessou graves crises depressivas ao longo da vida. Isolou-se por diversas vezes, mas enfrentando dificuldades financeiras, precisou ser ajudada por amigos, como Antonio Candido e Marilena Chauí. Despejada, viveu seus últimos ano na “Casa do Estudante Universitário”, em São Paulo. Após sua morte, Em 2007, o Ministério da Cultura concedeu-lhe a Ordem do Mérito Cultural, categoria Grã-Cruz.

ROSA

Eu assassinei o nome
da flor
e a mesma flor forma complexa
simplifiquei-a no símbolo
(mas sem elidir o sangue).

Porém se unicamente
a palavra FLOR – a palavra
em si é humanidade
como expressar mais o que
é densidade inverbal, viva?

(A ex-rosa, o crepúsculo
o horizonte.)

Eu assassinei a palavra
e tenho as mãos vivas em sangue.

17 – ISABEL CÂMARA (1940 – 2006)

Maria Isabel Câmara é mineira de Três Corações. Além de poeta, destacou-se como dramaturga e atriz, apresentando obras e espetáculos que se tornaram referências para a contracultura da época. Apesar de não ter sido propriamente uma integrante do movimento marginal, fez parte da antologia “26 Poetas Hoje”, organizada pela imortal Heloísa Buarque de Holanda. A vida artística da poeta ganha maior projeção quando, aos 18 anos, muda-se para o Rio de Janeiro. Logo em sua primeira peça escrita, “Os Viajantes”, a boa repercussão fez com que Domingos de Oliveira fizesse uma adaptação para a TV. Em 1969, estreou “As Moças”, no Teatro Ipanema, chocando o público ao mostrar em cena duas mulheres que dividiam um apartamento e expunham de forma poética os problemas da juventude. A peça lhe valeu o Prêmio Molière de 1970.

DEZENOVE DO OITO DE MIL NOVECENTOS E SETENTA E QUATRO

Não entendo nada desta janela fechada
que me aperta a culpa
Doer não doi mais,
nem sangra –
Consegui o que queria:
ser despedida, ficar perdida
falida & alone
olhando o pale da Comedia.
Sei que me chamam Bel
Mel de paixão
sugado da boca louca
de onde sangra o coração
e chora a hora
do leito vazio
da falta de peito
do jeito do beijo
fácil, difícil, sutil.

A verdade é que vivo a mil
sonhando a morte em azul-anil

18 – NEIDE ARCHANJO (1940 – 2022)

Paulistana de nascimento, Neide foi advogada e psicóloga, além de uma das mais ativas poetas de sua época. Iniciou na literatura em 1964, ao publicar o livro “Primeiros Ofícios da Memória”. Nas décadas seguintes, aliou a produção poética ao exercício da advocacia. Em 1969 criou o movimento “Poesia na Praça”, exposição de varais de poesia na Praça da República, em São Paulo, junto com José Luiz Archanjo e Ilka Brunhilde Laurito. Teve participação, em 1980, na criação e implantação da Oficina Literária da Biblioteca Mário de Andrade. Integrou o programa O Escritor na Cidade, organizado pela Fundação Biblioteca Nacional, em 1993, em Recife (PE), Curitiba (PR) e Fortaleza (CE). Neste mesmo período participou do projeto Encontro de Escritores, promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.

NÃO PUDE SER

Não pude ser
o teu amor perfeito
antes esta ferida.
Por isso para ti
não serei a pele
— poro a poro teu alumbramento —
serei apenas a cicatriz.

Perfeita.

Esculpo a página a lápis
e um cheiro de bosque
então me aparece.
Que a poesia é feita de romãs
daquilo que é eterno
e de tudo que apodrece.

19 – BEATRIZ NASCIMENTO (1942 – 1995)

Nascida em Aracaju, Sergipe, Beatriz foi poeta, historiadora, professora, roteirista e ativista pelos direitos humanos de negros e mulheres brasileiras, tornando-se voz influente nos estudos das relações raciais no país. O seu trabalho de maior reconhecimento foi o documentário “Ori” (1989), dirigido pela socióloga e cineasta Raquel Gerber. Em relação à poesia, suas obras mantém o olhar sobre a corporeidade do negro; a perda da imagem que atingia africanas e africanos escravizados e seus descendentes em diáspora, e a situação das mulheres negras no Brasil. Faleceu no Rio de Janeiro, assassinada por seu então companheiro, Antônio Jorge Amorim Viana. Vítima de inúmeras agressões físicas e verbais, após uma nova discussão, a poeta levou cinco tiros e não resistiu. Antônio, que era reincidente, foi preso e condenado a 17 anos de prisão. Beatriz Nascimento tinha 52 anos e uma filha.

SONHO

eu nome era dor
Seu sorriso
dilaceração
Seus braços e pernas, asas
Seu sexo seu escudo
Sua mente libertação
Nada satisfaz seu impulso
De mergulhar em prazer
Contra todas as correntes
Em uma só correnteza
Quem faz rolar quem tu és?
Mulher!…
Solitária e sólida
Envolvente e desafiante
Quem te impede de gritar
Do fundo de sua garganta
Único brado que alcança
Que te delimita
Mulher!
Marca de mito embotável
Mistério que a tudo anuncia
E que se expõe dia-a-dia
Quando deverias estar resguardada
Seu ritus de alegria
Seus véus entrecruzados de velharias
Da inóspita tradição irradias
Mulher!
Há corte e cortes profundos
Em sua pele em seu pelo
Há sulcos em sua face
Que são caminhos do mundo
São mapas indecifráveis
Em cartografia antiga
Precisas de um pirata
De boa pirataria
Que te arranques da selvageria
E te coloque, mais uma vez,
Diante do mundo
Mulher.

20 – HILDA MACHADO (1951 – 2007)

Carioca de nascimento, Hilda Machado ficou mais conhecida como poeta após a sua morte. Cineasta premiada nos principais festivais do Brasil, como Gramado, Recife e Rio de Janeiro, também  foi professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). Foi presa pela ditadura militar em 1978, e teve muito de seus trabalhos censurados pela ditadura. Tanto que, em vida, a poeta publicou apenas dois poemas, “Miscasting” e “Cabo Frio”, ambos na revista “Inimigo Rumor”. Em 2017, uma década depois de seus falecimento, encontraram e registraram um livro de poesias escrito por ela, em 1997. Intitulado “Nuvem”, a obra vendeu o Prêmio Jabuti, em 2019.

O NARIZ CONTRA A VIDRAÇA

como a paisagem era terrível
mandou se fechassem as janelas
o nariz contra a vidraça e o fla-flu comendo lá fora
genocídios, promessas, plenilúnios
O festim de Nabucodonosor, a vitória dos pó-de-arroz
as dores do pai e os gritos de amor
são agora aquarelas pitorescas

O nariz contra a vidraça
melhor ainda atrás da persiana
ela com seus preciosismos
unhas feitas entre desfiladeiros de livros
barricadas contra o sublime e o medo

Discreta voyeuse
o sofá combinando com o tom das exegeses
a polidez dos móveis, avencas, decassílabos, filmes russos
perífrases sobre paninhos de crochê
e em vez de carne poemas no congelador

Anônima, dizia sempre à manicure
e apesar das mãos que enrugam
as unhas bem curtas e o esmalte claro, por favor

Um dia, o leite derramado na cozinha, saiu
garras vermelhas, bateu à porta do vizinho