Alberto Girri nasceu em Buenos Aires, Argentina, a 27 de novembro de 1919. Poeta, escritor e tradutor, foi reconhecido como um dos mais originais poetas de sua geração, se tornando uma figura amada ou odiada pela crítica do país. Traduziu numerosos poetas ingleses e americanos, incluindo T. S. Eliot, Wallace Stevens, Robert Frost, Robert Lowell e William Carlos Williams.

O seu primeiro livro, “Playa Sola”, distingue-o entre a chamada “geração 40”. O seu estilo único e pessoal nunca se enquadrou a qualquer movimento específico. Girri publicou cerca de trinta livros nos quais foi gradativamente abrindo mão das letras elegíacas e tradicionalistas.

Sua linguagem tornou-se ascética e profunda. Muitas vezes era chamado de “árido e incompreensível”. No entanto, o seu compromisso radical com uma poesia despojada e impessoal conseguiu tornar-se fundamental para os poetas das gerações recentes.

Alberto Girri faleceu no dia 16 de novembro de 1991, em Buenos Aires, Argentina


T A O

Forma sem forma, um verbo
que carece de tempos
entra no que chamo
minha pessoa
(corpo e não-corpo,
opostos, alternantes fases),
e pelos pulmões
cinzas como pedras,
pelo fígado, os olhos,
e outra vez o fígado,
me deixa preguiçoso, murcho,
abandonado pela sorte,
alheio às matanças
e à sua dor,
deixando-me entrever
que virtude
suaviza
e descarta o pródigo
exuberante dos sentidos,
dissolução, pilares de sal,
obsessão do presente,
e que envenena
qualquer desejo rígido, teimoso
de nos isolar.

Desde este instante
eu sei (eu sei, acho),
que nada poderia me derrubar,
e mesmo morrendo
eu não pereço; eu sou, eu tenho,
estou no Caminho.

O ESPÍRITO QUE ESTÁ NA CARTA

Ora em uma caverna,
morcego,
ora inseto, ao ar livre,
que cego e guiado
pelo zumbido das antenas
laboriosamente cava,
desmonta a terra,
prepara o campo
só no escuro
adquire força e beleza,
juízo, conhecimento de si,
poder de devastação e ardor,
pois de verdade
ao anular sua embalagem,
caos de signos, incomunicável voz,
brota e trabalha melhor
e mais de sua própria profundidade,
de sua,
gozando do que é dele,
como a letra
se afoga pelo que contém
mas não possui.

Antiquíssimo, afirmam os sábios,
é a forma
que ele usa
para desnudar-se, memorizar
sua desnuda origem,
quando as escuridões
estavam escondidas nas escuridões.

MAGNITUDE ZERO

Como centro da roda,
orifício
reduzido a um ponto;
roda
e cubo da roda, passivo
centro que faz possível
a rotação.

Como anel
que por livre
jogo de sinônimos,
e porque todo nome
é imitação do nomeado,
limitação do inominável,
configura o céu,
ar e espaço, absoluto
contendo o mundo.

Como ferramenta imaterial,
motor e máquina
criados do nada,
vazio
filho de vazios resultantes
de ciclos que se completam.

Como número, visão da eterna
trama da verdade,
porque no zero não existe erro.

SEM FIM, O TEMPO

Em círculos, milhões
de anos voltando para trás
com as queixas que saíram de mim,
saem, voltarão a sair.

Sucede
onde o começo da contração
perpetuamente segue
ao apogeu da extensão,
e o mais recente
não é o último da série,
não é superior ao que antecede.

Desassossego
quando ao intuir
o paradoxo de sua natureza,
seu retrógado poder,
os erros que minha existência comete
aparecem como réplicas, equivalentes
daqueles cometidos com a minha morte,
e sou a lenda, sou
em seu fluir aquele guerreiro
que perdera todos os sinos
desde que em suas honras fúnebres
alguma oração foi mal lida.

LITERATURA

Ser Proust, Henry James, Valéry,
ou não ser nada,
ser Baudelaire,
ou não escrever nem uma linha,
levantar-se, inapeláveis,
em analistas e especialistas
dos males e das letras,
patologistas de suas épocas,
juízes de seus confrades,
e discriminadores do êxito
(que desejam e desejam desdenhar),
como afortunada conjunção
de crítica e aplauso,
triunfo da probidade,
declaração de algo que conta.

E ao resplendor de ordens supremas,
menos que conchas
espirrando em uma magra,
bem educada fecundação
que nos distancia de quimeras
e gostosa substitui
o voraz esforço de Balzac,
os conflitos de Flaubert e seus burgueses,
o anonimato do primeiro Cervantes,
a conversão de Tolstói,
por uma luta amável, diálogos
imunizados, sem asperezas com o meio.

UMA METÁFORA

Como o ácido busca o ácido,
e o calor se inclina ao cálido,
e o jogador de verdade
joga até o fim, até que perca,
nem de dia nem de noite seja
o adorador da besta.

Dentro de nós
é vigiado e protegido,
suportá-lo
é nossa recompensa, o manchar
a ideia de que uma pele e uma imagem
é a do homem, outra da besta,
mostrar-nos
que quanto acontece com os homens
e quanto acontece com a besta
o mesmo evento é, qualquer
sejam as mutações
do comércio humano,
o feitiço animal, feitiço
Nascido da besta e da sua presa,
dizer
chorar, simpatizar,
criar, crescer, confiar,
impor, adicionar,
curva, seja molde, figura,
esticar o arco,
ampliar as rachaduras,
andar na ponta dos pés,
dar as mãos,
dar e ficar nu,
examine os ângulos
de quartos, curvas,
porões, espelhos,
julgar-se centro, reduto,
ser filho, semente,
flor domesticada e selvagem,
espalhar, comunicar.

Digam a si mesmos, incontáveis,
os imediatismos que sem a besta
nos escapariam,
reduziu nossa caminhada
para contemplações viciosas,
anseios de eunuco.

COMO INTRUSOS

Do estado puro
de violência e de graça
que nos hospícios se agacha
participam seus visitantes.

Um leve
esforço de acomodação
e não haverá diferenças
com aqueles que se inclinam para fora das grades,
os que obstinadamente
repetem ao barro,
alfarrobeiras e folhas de bananeiras,
o monólogo.

Um abraço
ao que em meio da crise demanda:
“Por que, mãe, por que?”,
os convencerá, nada muda,
e a corrente de blasfêmias, insultos,
representações sacrílegas,
acentua apenas
o que os visitantes trazem, mensageiros
de nossa intermitente, primitiva
e natural loucura, exibicionismo,
os pavores noturnos,
a culpada
fobia dos olhares.

*Poemas do livro “Alberto Girri – Obra Poetica II”, Editora Corregidor, 1978.
Tradução de Igor Calazans.