Carlos Souto Pena Filho nasceu em Recife, Pernambuco, a 17 de maio de 1929. Poeta, advogado e jornalista foi um do mais importantes nomes da literatura pernambucana do século XX, ao lado de João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo, Mauro Mota e Gilberto Freyre.
Carlos Pena Filho iniciou na literatura em 1947, com o soneto “Marinha”, publicado no Diário de Pernambuco. Em 1952, lançou o primeiro livro: “O Tempo da Busca”. Muito interessado em assuntos cotidianos de sua região, sua obra é carregada de oralidade e musicalidade, com forte apelo pictórico. Dono de um lirismo envolvente, é um poeta de imagens plásticas onde se destaca a cor, o movimento e a luz. Faleceu no dia 28 de junho de 1960, após um acidente automobilístico, no Recife.
Soneto
Despiu-se dos imensos horizontes
que vestiam seu gesto inacabado
e, envolvendo seus pés em céu molhado,
ofereceu-se à fábula das fontes.
Mais que inútil ficou ao ver que dentre
os olhos e a cintura transbordavam
rosas azuis que as barcas carregavam
para o delta sombrio de seu ventre.
Tão sinuosa estava que esquecidas
ficaram suas mãos, redescobrindo
promontórios e terras proibidas.
Talvez, de novo, rasgue os horizontes
e, vestida de aurora e tempo findo,
se reoferte à fábula das fontes.
Soneto instantâneo
Instante nos teus olhos – a vertigem
me arremessa a um losango decomposto
e se perde nos campos de teu rosto,
onde, serena, estanca a minha origem.
O instante de teus olhos dás à fonte
e da fonte recolhes gestos frios,
por isso tens nas mãos esse horizonte
limitado por búzios e navios.
Instante que se parte e se oferece
ao meu silêncio unânime e ao canto
nascido de si mesmo quando, lento
e grave, o sono mais tardio tece
dentro do olhar esse agressivo espanto
de quem se espanta e encanta a um só momento.
A Charles Baudelaire
Carlos também,
embora sem
flores nem aves,
vinho nem naves,
eu te remeto
este soneto
para saberes,
se acaso o leres,
que existe alguém
no mundo, cem
anos após,
que não vaiou
e nem magoou
leu albatroz
Testamento do homem sensato
Quando eu morrer, não faças disparates
nem fiques a pensar: “Ele era assim…”,
mas senta-te num banco de jardim
calmamente comendo chocolates.
Aceita o que te deixo, o quase nada
destas palavras que te digo aqui:
foi mais que longa a vida que eu vivi,
para ser em lembranças prolongada.
Porém, se um dia, só, na tarde em queda,
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em voo se arremeda,
deixa-a pousar em teu silêncio, leve
como se apenas fosse imaginada,
como uma luz, mais que distante, breve.
Poema de Natal
– Sino, claro sino,
tocas para quem?
– Para o Deus menino
que de longe vem.
– Pois se o encontrares
traze-o ao meu amor.
– E o que lhe ofereces,
velho pecador?
– Minha fé cansada,
meu vinho, meu pão,
meu silêncio limpo,
minha solidão.
A superfície da rosa
Solta, dentro do tempo, a flor descrita
pelo improviso tênue de seus lábios,
rota de muito azul que se desmancha
junto ao silêncio limpo da manhã,
junto aos seus leves dedos e aos cabelos
serenos como abril e aos lenes olhos
onde o sol se imagina a cada instante
e, de repente, a luz de precipita.
Solta, no azul do tempo, a rosa rara
nascida na distância inavegável
onde o olhar não chega e o sonho estanca
na ternura serena dos lugares,
em nossa leve e lene amorgrafia,
dentro da eterna solidão dos mares.
Soneto para certa moça ou História da poesia brasileira
Roubaste o verde aos impossíveis mares
e o roxo das incautas caravelas.
Por isso, és governada por aquelas
gravíssimas perturbações lunares.
Na fuga que fizeste dos altares
buscando o imponderável das janelas,
trocaste apenas quadros seculares
pelas cores de novas aquarelas.
Daí eu te dizer que fostes, outrora,
habitada por trágicas mudanças
sem nunca te encontrares, como agora.
Também, tu nada sabes de esquivanças
e assistes, frágil e indefesa embora,
dentro de ti saltarem novas Franças.
*Poemas do livro “Livro Geral”.