Walmir Félix Ayala nasceu em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, no dia 4 de janeiro de 1933. Um dos escritores brasileiros mais premiados de sua geração, sua obra poética vincula-se à terceira geração do Modernismo brasileiro. Organizou diversas antologias, como a Antologia dos poetas brasileiros – fase modernista, em parceria com Manuel Bandeira, em 1967. Ainda traduziu para o português peças e poemas dos espanhóis Miguel de Cervantes  e Federico García Lorca , entre outros.

Graduado em Filosofia pela PUC-RS em 1954, no ano seguinte Walmir publica seu primeiro livro de poesia, “Face Dispersa”. Em 1956, transfere-se para o Rio de Janeiro, onde passa a escrever textos teatrais. Entre 1959 e 1965 atua como crítico de arte em diversos periódicos. Durante a década de 1970 trabalhou como assessor cultural do Instituto Nacional do Livro.

Em relação à sua obra, Walmir Ayala tinha em Lúcio Cardoso um grande mentor intelectual. Ambos fizeram parte de um grupo denominado “Geração da Imagem” e viviam os conflitos de não se adequarem à geração a que pertenciam. Temas como a morte, Deus e a religiosidade, eram costumeiramente abordadas em seus poemas. Homossexual assumido, outra grande fonte de críticas do poeta era sobre o modo extremamente preconceituoso como eram vistas pessoas como ele na sociedade.

Walmir Ayala faleceu em 28 de agosto de 1991, no Rio de Janeiro.


IMAGEM

O pássaro voa refletido no espelho
e imagina
o céu do outro pássaro.

Contra a face intransponível
investe
e sente o beijo frio da imagem.

Também o pássaro refletido deseja o mundo,
até que o espelho partido
consuma o pássaro real
e o corpo fragmentado da imagem se decompõe
.                                                                       sem voz.

SONETO

Serei a suspeição do antigo nácar
de que era o canto arguto da sereia,
cisma de hirtos corais no olhar de areia,
unhas de cegos fios como facas.

Serei a foz do limbo que encouraça
corpos de escama, e gesto que penteia
verdes vaidades de ondas, que se traçam
pelas perplexidades da sereia.

Serei às vezes transpassado em dardos
como um ninho de ostras, destinado
a oferta-me à sereia, rosa vivas;

e nascendo em seu bico, peixe ou nave,
com duplas velas comporei mais cêdo
cataclismas de mim no seu rochedo.

ATÉ O FIM

Até o fim com esta garganta
e êstes olhos
líquidos, até o fim
com estas mãos trêmulas.

Até o fim com êstes pés exaustos
e êstes lábios costurados
ao pé da noite. Até o fim
sem dizer nada.

Até o fim êstes canais premindo
o sangue.
Até o fim o obrigatório oxigênio
sobrevivência
no abstrato
difícil ar.

Até o fim a tinta ilesa do amor
na alma,
até que quebrem as epidermes
desta menina,
e o fim prossiga
até o fim.

O COMEDOR

Não sei que posição tomar sentado à mesa.
O cadáver aberto à minha frente, a salsa, o azeite
e o olhar de quem me chamará de hiena.

O cadáver do meu irmão, olhos vasados,
posição hirta, e eu como trincar
assim, todo enredado de piedade?

Garfo e faca. A lâmina se estira
e nem ruído fará na polpa. Ah, bom tempêro,
sei de teu gôsto intacto nas mandíbulas
minhas, já tão cansadas desta fome.

A parte mais amorfa me contenta
a que eu não saiba coxa, orelha, lombo.
Eu sei, a gente
que te come voraz, vendo que hesito
gritará quando eu cravar dente em teu corpo
macio, irmã vitela.

Saio daqui, da mesa onde te expões
nadando o môlho do teu próprio sangue.

Eu me recuso, pois teu osso como um cetro
esmagará meu cancro deglutido,
e eu, teu devorador, sendo engolido
pelo acéfalo tempo, mais banquetes
manterei nestas mesas imaturas.

MAÇÃ

Mordo a maça da noite. Um gôsto antigo
me reduz ao silêncio. Sumo ou lágrima?
Desperto na viagem e esta carne
da maçã me converte ao que não venço.

Amor é a mão com que êste corpo empunho
inocente e secreto. Seu rubor
é estar aqui meu coração, seu sumo
é esta saudade de um pomar aberto

onde eu mordo maçãs e entendo a doce
película da noite me aclarando
na soturna feição de estar desperto

e amando, e tudo o mais seja a extensão
dêste pomar de dúvida e suspeita
onde meu sonho à noite não se deita.

MALDITO

Pretendo no meu tempo esta infinita
dor de crescer pelagem de maldito.
Ergo a tocha candente, asculto o grito
que é meu, e não entendo o que me dita.

Mas avanço: terrível lenço agita
além do sonho onde áureo me reflito,
e atendo ao gesto, afundo e o ar que habito
é pleno de alegria e de desdita.

Mas amo, e amar me escuda e prolifera,
estéril corpo me armo de fecundos
mundos, invento tudo o que não era.

E o que era transborda num gemido,
e ebriado dos mares mais profundos
me completo, futuro e preexistido.

V (O QUE MAIS IMPORTA: O CORPO OU A PALAVRA?)

O desenho ou o verbo?
Dono do céu esculpe
o azul sombrio do instante
(e não é o corpo ou ária).
É como o tudo: a carne
pejada de abandono
se compões áurea porta.
Longe a palavra voa.
De pássaros morremos
amparados no corpo
que teremos
de menos.

II (SÃO OS POETAS UNS PREDESTINADOS?)

Ah, vai chegar o dia
em que todos farão poesia:
abri-vos, lumes da melancolia,
praias de adeus, sal de rancores,
há de chegar tempo de amôres
em que transitará a alegria.

Esquecei-vos, poderosos, dos tronos!
Deixai o supérfluo, adoradores!
Há de chegar um tempo de escolha,
uma noite de lanterna e flôres,
um dia de barcos e brancuras
sôbre campos e campos e campos.

Será o dia da poesia,
o dia das almas e dos corpos,
dos enlaçamentos sem culpa,
das prisões abertas e da vida,
o verdadeiro dia, e quais os olhos
presentes beberão a água sadia?

E então se há de indagar por outros tempos
de névoa escura, e de tremor – os lábios
sombreados de receio hão de calar.
Mas o anjo da poesia, extremo e vasto,
desdobrando estandartes para amar
há de logo verter vinho e imemória
no homem do despertar. Será no dia
em que todos farão poesia.

*Poemas do livro “Poesia revisada”, Gráfica Olímpica Editora, 1972.