Bernardo de Mendonça nasceu na praia da Avenida, em Maceió, no ano de 1950. Passou a infância entre Alagoas, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Poeta e jornalista, trabalhou em redações do Rio e São Paulo, de 1969 a 1985: Última Hora, Veja, O Jornal, Opinião, Jornal da República, Rede Globo de Televisão. Organizou para a Graphia Editorial, na Série Revisões, os volumes dedicados à obra dispersa de Manuel Antônio de Almeida, à poesia de José Albano, aos textos confessionais de Lima Barreto e à crônica de José Carlos Oliveira.

A obra poética de Bernardo de Mendonça perpassa principalmente pelas viagens, paisagens dos locais que morou. Apresenta um olhar atento sobre a convivência urbana, principalmente em relação às contradições sociais do país. Do experimentalismo à tradição do romance em versos, seus livros dialogam com a história brasileira, sobretudo com os seus poetas prediletos – desde Ascenso Ferreira e Augusto dos Anjos a , Mário de AndradeTorquato Neto, que se revelam tanto no confronto constante entre vida e morte quanto nas reflexões mundanas.

Bernardo de Mendonça faleceu em 2017, em Petrópolis, no Rio de Janeiro.


Jogo

(ou pares ou ímpares)

1.
na tarde, aderno:
azul, o inferno?

2.
azul, o inferno:
cinzento, o terno?

3.
o terno cinzento:
a alma adentro?

4.
que há de vermelho
agora no espelho?

5.
entre tarde e noite
quem mais de mim foi-se?

6.
beberei por quem:
por um ou por cem?

7.
beber e andar:
meu destino é lá.

8.
meu destino é longe:
sou hoje sem onde.

9.
lenta, toda sina
e lá vem buzinas.

10.
a fuga ignota:
porta entre portas.

11.
que tudo é porteira
e infinito à beira.

12.
o infinito à beira,
a vida inteira.

13.
não ouvi o mar:
ir é sempre estar.

14.
em vão, bater perna,
ó província eterna.

15.
tudo é janela;
e essa praça, Terra.

16.
milhões de vigia
tocaiam-me os dias.

17.
o que em mim se espia,
me assustaria.

18.
inútil, esquivar-me:
espelho o alarme.

19.
solidão e ontem
já não me escondem.

20.
contra o humano assédio,
que humano remédio?

21.
chafurdai no drama!
(menos mal que em lama).

22.
só média alegria:
mais, irritaria.

23.
só média paixão:
mais, provocação.

24.
só médio fracasso:
mais, sentem asco.

25.
a morte à mão:
e eu lhe digo não.

26.
a morte que arquivo:
disso sobrevivo.

27.
a morte, esperança
ao inverso, me lança.

28.
vim de quantos mundos
de inúteis segundos?

29.
são quinze mil dias:
de dez lembraria?

30.
todavia vou:
é a vida ou

Anteprojetos

Agora que o silêncio é impossível
com a mudez em vão tente cortar
a teia incessante do delírio;
e sem deixar instante de vestígio
trocar de fantasia, desnudar
cada disfarce da primeira face;
deitar ao chão o imenso edifício
atrás do movimento inicial da vida,
nos pés do vento, na raiz do fogo,
na clara matriz d’água nascente,
na explosão do ovo, da semente,
agora, de repente, ser de novo.

Do verde ao maduro:
do texto cortante
que à cana toca
até o instante
macio nas mangas:

do verde ao maduro:
raízes gulosas,
folhagens no vento:
vôo ou mergulho?

do verde ao maduro:
mágica de entranha,
ânimo no escuro?

do verde ao maduro:
silêncio ou som puro?

Insucessos simultâneos

Sete anos não escrevo
porém agora prometo:
um verso amanhã e sempre,
sim, amanhã, com certeza,
amanhã e todo dia
(hoje é só arremedo).

O burocrata do tédio,
o burocrata do gáudio,
o burocrata do câncer,
o burocrata do gozo:
um poeta militante
juntando obra sobre obra.*

Olá, leitor, sabedor
do espírito de cada coisa:
quem fará deste dejeto
outro objeto sagrado?
(Tudo é velho e necessário:
até o verso seguinte
ao que conseguiu fartá-lo.
Até o lixo mais triste.

Até o traste recente.
Deus ainda é Deus no depósito
das novidades inúteis.
Por isso – até isso – ore:
ave coisas entre coisas,
que toda forma é reforma,
que toda matéria é alma.

O vício da vida

Exausto de matá-lo
e o outro, omisso
ao próprio extermínio,
estúpido ressurge
no momento seguinte:
já não é um, o morto,
multiplica-se em vinte;

quanto será preciso
matá-lo outra vez;
quantas vezes ao dia,
quantos dias no mês?

me declaro suspeito
para o pleno assassínio
– enterrá-lo e esquecê-lo.
Não me falta desígnio
mas juízo perfeito:
julgá-lo é tão falso
quanto mais fazê-lo.

Robinson Crusoé foi o que se soube.
Outros mais escaparam do naufrágio
e habitaram sem nome suas ilhas.
Mas para eles nada de eterno.
Mas para eles nada de retorno.
Se sabiam do céu e do inferno,
mais sabiam da terra e seu contorno.
Tinham apenas a visa, esta armadilha.
Tinham vida a comer, e mudamente
comeram – ou cumpriram a sentença.
Ali estão, na ilha: eles, somente,
à margem da legenda, só presença
de vida contra vida, no infinito
e no centro do azul que os exila.

A quem mais fingirás que te decifras,
com essa oferenda de imagens,
se nem lembras o olho mais presente
e nem guardas a foto mais convicta,
que o tempo não te fez mentir contente.

*Poemas do livro “Os fantasmas tropicais”, Graphia Editorial, 2006.