Fernando José Branco Pinto do Amaral, nasceu em Lisboa, Portugal, a 12 de Maio de 1960. Professor de Literatura, poeta e tradutor, é um dos nomes mais representativos da poesia contemporânea portuguesa. Recebeu, em 2008, o Prémio Goya, na categoria de Melhor Canção Original pelo seu Fado da Saudade, interpretado por Carlos do Carmo no filme Fados, de Carlos Saura. Em 2009 foi nomeado comissário do Plano Nacional de Leitura, cargo que ocupou até Abril de 2017.
Da sua obra poética salientam-se Acédia (1990, Poesia), A Escada de Jacob (1993, Poesia), Às Cegas (1997, Poesia), O Mosaico Fluido — Modernidade e Pós-Modernidade na Poesia Portuguesa Mais Recente (1991, Prémio de Ensaio Pen Club), Na Órbita de Saturno (1992, Ensaio) e Poesia Reunida (2000). Em 2004 editou o livro de poemas Pena Suspensa e A Aventura no Game Boy (infantil). Mais recentemente, publicou o conjunto de contos Área de Serviço e Outras Histórias de Amor (2006) e A Luz da Madrugada (poesia, 2007).
Além disso, tem colaborado nas revistas LER, A Phala, Colóquio/Letras, Relâmpago e fez crítica literária nos jornais Público e JL. Traduziu As Flores do Mal, de Charles Baudelaire, que lhe valeu o Prémio do Pen Club e o Prémio da Associação Portuguesa de Tradutores, e Poemas Saturnianos de Paul Verlaine. Traduziu ainda toda a poesia do argentino Jorge Luís Borges.
UMA HERANÇA
Foi pelo retrovisor que te vi. Mal entraste
naquele banco de trás
tinha mudado a minha vida. O mundo
parecia pertencer-te enquanto me fugia:
horas e horas atrás de um volante,
o olhar embaciado, os fumos desse verão,
tudo se ia afastando, misturado
com a névoa das insônias e, porém,
retendo aquele pedido, a tua voz
tão forrada de lágrimas.
Toda a minha cabeça era um poço de sangue
quase a explodir à luz do lusco-fusco – um sonho
a convidar-me, a desejar ser escrito
no meu diário íntimo.
Não me satisfizera o teu quartinho kitsch
e um dia combinamos um pequeno-almoço,
mas eu sabia apenas seguir-te à distância
de esquina em esquina, como se os teus passos
fossem deitando fogo a todas as memórias
ao próprio coração. Preso àquelas semanas,
imaginei uma saída,
um ato redentor, um gesto heroico: um tiro
solitário? Alguém,
era preciso alguém que herdasse aquele amor;
que empunhasse uma arma e disparasse
anos e anos mais tarde – estes versos
são rajadas de balas a atingir-nos.
FANTASIA
Olhos de areia e cinza – quem soubesse
jogar com eles até o impossível
uma qualquer verdade igual à sua
noite. Diante de ti outros rostos
talvez como eu à espera de um relance
que mais ninguém pudesse pressentir.
Eu sei que a vida é triste e que o olhar
regressa ao coração por um abismo
onde nem tu nem eu estivemos nunca,
mas peço-te por tudo, não fiques assim,
andrógina figura, príncipe ou
princesa do império que perdi.
Consome a tua angústia no clamor das vozes,
vai pelo céu de agosto com a lua
e deixa-me os teus sonhos. Por agora,
de nada mais preciso – apenas esse
conto de fadas ou história infantil.
Fugaz maneira de invocar a morte.
F.O.
Por uma noite quis saltar o muro
e a infância, atravessar a pé
a floresta que ia ter ao rio.
Doloroso refugio seria
a arte desses remos seduzindo
a manhã. Mais ninguém
como ele sabia que <<a alma
é um vício>>, uma casa deserta
onde se cumprem difíceis poderes, desavenças
entre os segredos que o tempo desenha e algumas
mensagens da razão. A paciência
sustentaria essas manchas de luz, poderia
dar abrigo ao seu rosto, ensaiando
outros enredos para o mesmo olhar.
APÓCRIFO PESSOANO
O eu sentir quando penso
e pensar enquanto sinto
origina um labirinto
onde me perco e convenço
de que tudo é indistinto,
do que o mundo se organiza
desorganizadamente
nos recônditos da mente
como uma ideia imprecisa
que quando se pensa, sente
e quando se sente, pensa,
numa confusão total,
num processo irracional
em que se esfuma a diferença
entre o que é ou não é real.
Dos meandros disso tudo
nasce apenas um desejo:
distinguir o que não vejo
e é talvez o conteúdo
deste infinito bocejo
a caminho não sei de onde,
à espera não se de quê.
Quem em ouve? Quem me vê?
A vida não me responde
e, afinal, ninguém me lê.
SEGREDO
Esta noite morri muitas vezes, à espera
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses a tua a conduzir
o seu ritmo assombrado nas trevas do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento,
a música da chuva nas janelas
sob o frio de fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projetou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome – essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração.
5.
Para quê uma imagem? Tão longe
o silêncio das vozes sob o quarto
crescente. Sem rumo
seria o vento e eu talvez pudesse
chamar inspiração a essa rápida
ameaça de morte.
Fragmentos de um outro destino, recantos
reluzindo na esperança de um novo
sorriso. Era rapaz ou rapariga? Não
consigo recordar-me. Pouco interessa:
o mundo irreal sempre foi mais real
do que esses rostos iguais aos outros
em poses de alegria ou de tristeza
e alguma literatura.
<<Não é fácil>>, de fato, <<dispor,
em matéria de afetos>>. Mesmo a ti,
se ali estivesses, nada te diria.
Caía a música e violentas bátegas
e uma só verdade era possível;
um corpo diante de um corpo, a distância
entre menos e mais infinito.
É muito tarde, eu sei.
Nenhuma sombra guarda a minha história,
a memória da noite: um instante
entreaberto em fumo e eu prossigo
entre o gelo e o fogo, limites
de um antigo deserto – palavras
de Deus?
MENSAGENS
Invisíveis regressam as palavras
na penumbra de quem desce e que me abraça
em silêncio. As ruas da cidade
revelam cada rosto do passado,
cada perfil ou cada olhar – sorrisos
que setembro segreda e vou sentindo
como se fossem teus, como se ainda
por milagre viesses ter comigo
a mais um bar deserto, a mais um sonho
filho da meia-noite, nado-morto
talvez com este amor. O frio do outono
vai diluindo as margens do meu corpo
numa estranha neblina que submerge
a casa onde viveste, agora imersa
no mar das minhas lágrimas, eternas
como esse teu jardim – ó atmosfera
envolta em doces mágoas, entre os muros
de séculos e séculos! Às escuras
refluem as palavras, as noturnas
mensagens do passado ou do futuro.
*Poemas do livro “Poesia Reunida 1990 – 2000”, Publicações Dom Quixote, 2000.