André Capilé é um poeta, professor, performador e tradutor. Nascido em Barra Mansa, estado do Rio de Janeiro, em 20 de janeiro de 1978. É graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais. Mestre em Letras pela PUC-Rio. Doutor em “Literatura, Cultura & Contemporaneidade”, também pela PUC-Rio. Publicou: dois (não pares) [Funalfa Edições, 2008], em parceria com Carolina Barreto; rapace’ [TextoTerritório, 2012]; balaio’ [7Letras, 2014]; muimbu [edições macondo, 2017]; paratexto [edições macondo, 2018]; rebute [TextoTerritório, 2019]; chabu [TextoTerritório, 2019]. Traduziu, para a Edições Macondo [2016], “The Love Song of J. Alfred Prufrock”, de T.S. Eliot na coleção Herbert Richers; Não Digam que Estamos Mortos, de Danez Smith [Bazar do Tempo, 2020]. É editor da revista Escamandro.

zangarreio

enquanto cadeiras
são lotadas por
esquecidos
(cadeiras latifúndios
tipo luxo lotes baldios)
leis
com todo vigor
prendem
mas não pegam
enquanto cadeias
são lotadas de
ex-famosos
e
esquecidos
andam na linha
e
vão cada vez
mais dentro
enquanto cadeias
estão lotadas por
esquecidos
futuros
tipos de esquecidos
fazem fila para entrar
e
estar cada vez
mais dentro
e
uma vez dentro
formar quadrilhas
(cirandas entre
cadeias e cadeiras)
enquanto
no pátio
outros atores
que são
de dentro
fingem querer
estar fora
zumbis cavam
com colher pequena
e
mineram em covas
de outros esquecidos
que amontoados
feito ratos
(do dentro e do fora
cabeça a cabeça
espremidos
corpo a corpo)
atritam cotovelos
esperando fogo
de ideias
que são as mesmas
ideias
de cadeiras e cadeias
embora
cadeias e cadeiras
possam ser mais
que só ideias
quando ideias
passam a ser mais
que fogo
e
textos menos
cinzas
e
territórios menos
escombros

– André Capilé –
* rapace. Rio de Janeiro: Editora TextoTerritório, 2012.

ENTREVISTA

01 – O que significa ser Poeta na atualidade?

– Penso, de imediato, numa espécie de boutade utilizada por mim, quase sempre, quando perguntado do meu começo como poeta, cuja resposta é: desde que sou alfabetizado. Dito isto, hoje, e talvez como em qualquer tempo no Brasil, ser poeta é um lugar privilegiado, em que pese o balanço das estruturas no tocante à educação no país, e
muito possivelmente a resposta sirva a qualquer modelo de arte.

02 – Qual é a sua visão sobre a produção poética contemporânea?

– É comum a resposta acerca da variedade de poetas, homem e mulheres, cis ou transgêneres, de origem diversificada em termos locais, bem como de classe, também no tocante às sexualidades e instâncias raciais, cuja visibilidade cresceu exponencialmente por conta do advento das redes sociais. Não é falsa a impressão, muito pelo contrário. Diante da profusão de revistas eletrônicas, possibilidades editoriais ampliadas com as gráficas funcionando sob demanda, descentralização da produção das editoras de maior porte, possibilitou que uma quantidade enorme de vozes se colocassem no jogo. O que, talvez, e daí é preciso algum cuidado em dizer, a voga ampliada do uso de formas mais liberadas e uso marcado de certa dinâmica coloquial, ainda herança dos modernismos do século passado, junto de uma espécie de retomada do sujeito em suas experiências vivenciais mais imediatas e certa urgência de aspectos identitários, seja a tônica das duas últimas décadas. Outro aspecto, que também se confunde com a incidência de redes, é o avanço das práticas na utilização dos vídeos, bem como a ampliação do campo na performance. Embora não seja exatamente novidade, a facilidade maior na utilização dos meios alavancou esses cenários que, ainda é preciso dizer, convive com uma enorme fauna de modelos mais ou menos secularizados na ordem dos poemas realizados.

03 – Qual é a função social da poesia e do/a poeta na atualidade? Ele/a precisa ser atuante e se posicionar?

– Acredito que haja forte tendência de a pessoa civil se confundir com a pessoa poeta e, quase de modo automático, as questões que assombram o mundo compareçam em sua produção. Dito isto, não se trata exatamente de função, mas de compromisso ético (em seu sentido forte, dentro da máquina de costumes) e ação responsável diante das vidas presentes, as próximas e imaginadas, o que não implica, necessariamente, um ordenamento legislativo da atuação, do dever. Afinal, acredito eu, incitar qualquer engajamento partido duma cartilha ordinal dos deveres & fazeres é tarefa policialesca, de vigilância do privado. A pessoa pública de qualquer poeta, quando compreendida a partir do exercício da vida comum, em sendo dirigida à manutenção da dignidade dos viventes no mundo, acaba por cumprir qualquer papel.

04 – Inspiração ou transpiração: o que é mais importante na sua produção poética?

– Pensar, escrever, rever, reescrever, decantar, repensar, reescrever, rever, decantar, interminavelmente, até que não suporte mais olhar a mancha gráfica piscante das telas e, daí, dar-me como derrotado. Como sou pobre de imaginação, o caráter inspirado pouco me afeta; quando muito, assalto intuições de ouvido.

05 – Quais são suas principais referências poéticas? Como elas acrescentaram na sua escrita?

– Lembro, sempre, de uma frase, quase manifesto, de Valéry: “mordo tudo que posso”, daí o campo de referências estar sempre em consumação ampliada. Há toda uma dinâmica de ampliação repertorial, dado que acredito em estudo constante, o que, como dito anteriormente, serve a qualquer modalidade de arte. A visitação às tradições, e são incontáveis e não conheço que tenha dado conta de todas, muda a angulação do que realizo como poeta. Naturalmente há uma prevalência de retorno há algumas figuras do passado e do presente. A canção tem me sido claro fantasma ao longo da formação, bem como a forte relação com aspectos matriciais das religiões afro-brasileiras. Contudo, hoje, me assombram mesmo os vivos. Figuras como Ricardo Domeneck e Guilherme Gontijo Flores, Nina Rizzi e Eliane Marques, Paulo Henriques Britto e Edimilson de Almeida Pereira, Prisca Agustoni e Patrícia Lino, Otávio Campos e Sergio Maciel, Anelise Freitas e Júlia de Carvalho Hansen, Ronald Augusto e Cândido Rolim, Natasha Felix e Carla Diacov, Oswaldo Martins e Ismar Tirelli Neto, e por aí vai, são algumas das figuras que me tem ensinado outras possibilidades de realização… e a lista poderia ser interminável.

06 – Versos livres ou métricos? Linguagem coloquial ou erudita? Você diferencia poesia de poema? Como? Ainda há espaço para poemas líricos, clássicos e ditos “fixos”?

– Tal dicotomia, a mim me parece, não existe. Há poemas ditos em verso livre que, na sua consumação, apresentam tantos e mais andamentos ligados à dinâmica de ritmos mais marcados, assim como há poemas de realização métrica tão libertos quanto qualquer verso livre. Se tomarmos, pra ficar somente em um exemplo, o soneto, como forma histórica, nunca houve, de fato, uma fixidez de forma, exceto o fato de conter 14 versos e, pasme, nem isso era fixo, se se considerar o estrambote. Internamente, conforme situação histórica, o soneto vem encontrando modificações internas desde sua fundação. Se pegarmos o, talvez, primeiro tratado de versificação em língua portuguesa, de Phillipe Nunes, datado de 1615, já é quanto basta pra demonstrar isso. O mesmo serve para a ideia mesma do conflito entre coloquialismo e eruditismo, outra falsa dicotomia. Há determinados termos que são, de fato, de amplitude mais ou menos local. Há aspectos que são das formações, convencionais ou não, cujo o uso dos materiais utilizados na escrita podem ou não “elevar” o tom. Com certo distanciamento, em momento e outro, poetas que hoje estão distantes de nós historicamente podem soar completamente “altos” ou “eruditos”, quando seu uso do vernáculo era, simplesmente, o mais comum como prática de época. Se tomarem os temas, por exemplo, a coisa toma um rumo ainda outro.

Um poeta como Oswaldo Martins, cujo interesse pelas artes plásticas é evidente, no uso da língua não é erudito, mas no tratamento do tema pode ser tomado nessa chave. Contudo, opera, em seu projeto de síntese, uma série de curtos circuitos como problemas propostos em sua obra poética. Não consigo entender a ideia de clássico. Safo não foi um clássico em sua época, embora Lady Gaga seja um clássico agora, e são poetas muito semelhantes, em amplo aspecto. Logo, sempre haverá posição para uma ideia, ainda que liberta, de clássico. O que Ricardo Domeneck, por exemplo, tem feito no caminho da lírica, principalmente depois de Cigarros na Cama até Odes a Maximim, é caso de atenção absoluta de renovação na modalidade, e já vai tomando novos rumos com o seu Morse desse Corpo. Ronald Augusto com seu Ipásia, também entraria, facilmente, nessa clave.

Como a ideia mesmo de fixo é falaciosa, e é sempre bom lembrar que verso livre é uma forma, dentre várias, e também já secularizada, quase bicentenária, se considerarmos o plano de existência de Whitman pra cá, tomando de modo sucinto o que Paulo Henriques Britto e Guilherme Gontijo Flores fazem com as ditas formas históricas é um assombro, não de graça são dois imensos tradutores brasileiros. Pegue-se, por exemplo, a série “estudos para mão esquerda” ou “até segunda ordem”, do primeiro, ou o Áporo: Avessa do segundo, e qualquer ideia acerca disso esfarela, dado que são modalidades de formas históricas utilizadas com uma perspectiva tão liberta quanto o uso datado, o mais prolixo, do verso livre.

07 – Por que você escreve?

– Em dada medida, na primeira resposta, acabo respondendo essa questão. Replico: porque sou alfabetizado.

08 – Estamos historicamente em uma geração que busca “revisar” os acontecimentos do mundo e trazer à tona as versões oprimidas. Com isso, muitas obras clássicas passaram a ser criticadas, assim como seus autores. É possível separar os tempos e não associar esse passado à atualidade?

– Hoje, como em outros circuitos históricos, artistas, de modo geral, quase que invariavelmente revisaram seus próprios contextos, para o bem ou para o mal, de modo acertado ou de modo equívoco. Embora, em amplo aspecto, os contextos inclinem certo modo de leitura, não há possibilidade de isenção diante dos horrores do racismo, da homofobia, do machismo, dos sectarismos de classe, e por aí vai. Todavia, o banimento completo da leitura de obras problemáticas, impede a compreensão histórica de certos avanços diante dessas questões. O que implica em melhor preparo das mediações de tais temas. A história se movimenta com ventos difusos, cuja equivocação muitas vezes é componente metodológica. Haverá momento em que nossas próprias posições serão revistas como mais ou menos radicais ou adesistas, de enfrentamento ou recuo, acertas ou não. Imprevisível, no caso.

09 – Como você vê a efervescência da poesia e o aparecimento de inúmeros poetas nas redes sociais? Esse aumento traz benefícios? Ajuda ou atrapalha? Aproxima a poesia das pessoas ou banaliza a qualidade de produção?

– Resposta difícil sem que compareça, aqui e ali, algum ranço relativamente conservador. Ainda que o movimento de redes coloque em voga um sem número de poetas, na mesma medida invisibiliza com a mesma intensidade, dada a entulharia de textos que vão ser lidos com a velocidade de um clique, sem maiores considerações acerca da produção. Um exemplo que pode ser tomado, diante do ano de terror que foi 2020 e o quadro pandêmico, os poemas que trataram do tema diziam da emergência particular dos que sofreram consequências diante da Covid-19, contudo, apesar da alta profusão, a dinâmica dos confessionalismos talvez não confira longevidade ou visada mais organizada do que foi produzido. Tenho dúvidas de que tais textos poéticos sobrevivam sem respiradouros. É benéfico, não há dúvida, no aspecto da descentralização circular das editoras de maior porte. Contudo, tenho dúvidas, razoáveis, com a alta carga da produção sem instalação de um processamento crítico vigoroso — que não aponto como legislação da qualidade, do valor, embora sejam componentes críticos que devessem estar presentes em quem realiza o trabalho. Talvez, assim, a corrente da banalidade fosse, em alguma medida, dirimida.

10 – Como poeta, de que maneira você acha que será lembrado/a um dia?

– Não é algo que eu pense, honestamente.

*Entrevista retirada do livro “Na Poesia Viva: A Poesia Contemporânea Em Frente e Verso”, de Igor Calazans, publicado pela Editora Viés, em 2020.