A danação da Poesia em números e letras

Por Nélida Capela

Meu primeiro encontro com a poesia foi com um exemplar em castellano que minha mãe tinha do Pablo Neruda. Curiosa, abri e li umas páginas. Detestei! Preferi ler os livros de macumba da minha avó.

O fato de não gostar da poesia do Neruda, concluo, se deve ao fator subjetividade do gênero. Fernando Pessoa escreveu: “Há para mim um significado mais profundo do que as lágrimas humanas no aroma do sândalo, nas velhas latas num muro, numa caixa de fósforos caída na sarjeta, em dois papéis sujos que, num dia de ventania, rolarão e perseguirão rua abaixo. É que a poesia é espanto, admiração, como de um ser tombado dos céus, a tomar plena consciência de sua queda, atônito diante das coisas. Como de alguém se conhecesse a alma das coisas, e lutasse para recordar esse conhecimento, lembrando-se de que não era assim que as conhecia, não sob aquelas formas e aquelas condições, mas de nada mais se recordando.” Muito subjetivo, não? Muito particular também. Amamos uns poetas, detestamos outros. Vai entender.

Essa danação da subjetividade da poesia tem história, começa lá no Aristóteles, na Poética, que li durante o curso de Letras. O filósofo grego não define Poesia como gênero. Aliás, não define poesia, dedicando-se mais à prosa. Eu gosto mais da prosa. Eu tenho pra mim que a poesia sofreu muito com essa má influência aristotélica.

Anos mais tarde, década de 90, fui estagiar na revista Poesia Sempre, da Biblioteca Nacional. Era uma revista de poesia mesmo! Meu segundo encontro com a poesia. Cheguei lá e tinha um paredão de livros de poetas de toda parte do mundo. Meu chefe, Emanuel Brasil, adorava os poetas e recebia todos, que conheci também: Bruno Tolentino, Moacir Félix, Ivan Junqueira, Afonso Romano de Sant’Anna, entre outros. Fui tomando mais confiança nessa tal poesia.

Já no final da década de 90, fui trabalhar na livraria Timbre, famosa pelo acervo de autores independentes, poetas em maioria. Mais poesia me aguardava lá. Mas eu estava mais domesticada naquela época. Gostava da Hilda Hilst, Haroldo de Campos, Fernando Pessoa, Adolfo Montejo Navas, Adélia Prado, Manuel Bandeira, Marcos Siscar, Ana Cristina Cesar. A Poesia finalmente entrara na minha vida. Mas continuei não gostando do Neruda. Nessa livraria, que existe ainda hoje, havia uma estante gigantesca, 7 prateleiras com 1,68 de frente cada, cada livro de 140 páginas tendo mais ou menos um padrão de 1cm de largura, faz as contas para saber qual o volume do acervo de edições de poetas que editavam seus próprios livros — naquele tempo, a 7Letras começando, mas fora ela, somente a Massao Ohno em São Paulo. Portanto, o corpo de poesia que existia se devia ao forte sentimento de resistência e sobrevivência de uma animal chamado Poeta. Se não fosse essa espécie rara e pouco compreendida, não existiria tal subjetividade em letras.

Atualmente, esse estante da Timbre é ocupada por livros de Toda Sabedoria, que são Filosofia, Antropologia, Sociologia, Ciências. Poesia ocupa a estante que foi uma dia Toda Sabedoria. O mercado e os números ditam, às vezes, regras. Nessa questão, o espaço físico da loja e demanda do público também. Não há como ignorar o público. Jamais!

Há cinco anos trabalhando com o acervo da Blooks, já fiz a estante de Poesia encolher — um período que o gênero estava em baixa. Um cliente que me chamou a atenção: “estão acabando com a poesia!” Aquilo foi um grito de alerta, de socorro. Não passou muito tempo, a Poesia voltou com força total. Passamos a adotar as editoras independentes. E fizemos uma excelente seleção com autores de todo o Brasil. A estante hoje está lá, e resiste!

A danação da Poesia em números que tiramos da lista dos mais vendidos Publishnews e da venda na Blooks ilustra bem o que o mercado quer e o que cada livraria pode fazer. A livraria, diga-se de passagem, é grande aliada dos autores e editoras. Muitas vezes, considerada vilã e inimiga — mau exemplo de algumas, tenha certeza. Mas encontre a livraria certa para colocar a sua produção cultural e terá sucesso. Trabalhe junto, não basta o poeta largar livros lá e não divulgar, não fazer um trabalho de corpo-a-corpo com o leitor. O livreiro é o profissional chave nessa história, ele é o elo entre autor e leitor. São as figuras mais poderosas, pena que muitos se deixam iludir pelo ego e que outros sejam apenas vendedores de livros. Há grande diferença entre um vendedor de livros e um livreiro. Ah, se tem!

Números de 2014 até 2019

No site da PublishNews, poesia aparece na lista em 2014, fica ausente entre 2015 e 2016, e reaparece “forte” a partir de 2017. Em 2014, tem um livro chamado Pó de Lua (Intrínseca), que é poesia jovem. Em 2017, há um fenômeno a se observar, entra na lista Outros jeitos de usar a boca, da autora Rupi Kaur (Planeta), assim como entra o Livro dos Ressignificados (Paralela — Grupo Cia das Letras), do autor nacional Akapoeta — observem que ambos os títulos são de grande editoras. Em 2018, aparecem Textos cruéis demais para serem lidos rapidamente (Globo), Poesia que transforma (Sextante), O que o sol faz com as flores (Planeta — segundo livro da Rupi Kaur), autor Bráulio Bessa , do Ceará, escreve poesia de cordel e visita quadro do programa de TV da Fátima Bernardes, e de novo o Livro dos Ressignificados (Paralela — Grupo Cia das Letras). Em 2019, Poesia que transforma (Sextante), Textos cruéis demais para serem lidos rapidamente 1 e 2(Globo)e Bruxa não salva a si mesma (LEYA) seguem na lista.

Algumas observações que refletem o comércio em grandes livrarias, haja visto que são maioria na fonte de dados dessa lista: 1) todos os títulos vendidos de poesia refletem um mesmo tipo de poesia, 2) são títulos de grandes editoras, 3) é possível ver qual a linha editorial das editoras nesse gênero, 4)começa a haver um equilíbrio entre produção de poetas homens e mulheres. Poucas mulheres que fazem poesia ocupam espaços de visibilidade. Tanto na lista da PublishNews como na da Blooks, é perceptível esse levante. O ponto 5) as editoras investem em Poesia, sim, claro, mas esses destaques mostram o que o público está consumindo.

Na Blooks Livraria, temos a seguinte escala evolutiva da poesia em vendas:

2014: 1178 exemplares vendidos — aprox. 46 mil Reais

2015: 1853 exemplares vendidos — aprox. 68 mil Reais

2016: 1744 exemplares vendidos — aprox. 71 mil Reais

2017: 3362 exemplares vendidos — aprox. 126 mil Reais

2018: 3382 exemplares vendidos — aprox. 130 mil Reais

2019: 2390 exemplares vendidos — aprox. 99mil reais

*2016 e 2019 são anos críticos. Tenho certeza que 2016 foi o ano em que quase matei a poesia na livraria em função da queda nas vendas. Com um trabalho mais cuidadoso, a curadoria trouxe variedade e dando visibilidade, o público conheceu novas propostas e isso gerou consumo. Tenho certeza, também, que a Maria Bethânia, sim ela, deu uma baita ajuda ao gênero, quando publicou pela UFMG o livro Caderno de Poesias, com uma seleção de poetas de todos os tempos. Foram vendidos 145 exemplares. Ana Cristina Cesar foi homenageada da FLIP em 2016, sem dúvida, também ajudou nas vendas e deu visibilidade ao gênero. Seus livros, até então todos esgotados, foram reeditados pela Companhia das Letras. Mesmo assim, 2016 não fechou bem.

Em 2017, há a pluralidade do público, entre esses índices, o levante feminista com Jarid Arraes puxando as vendas, Rupi Kaur, Ryane Leão, Angélica Freitas. Reedições de obras esgotadas também entraram na conta com a Companhia das Letras editando Paulo Leminski, Wally Salomão, Jorge Mautner, Hilda Hilst e Ana Cristina Cesar. Também em 2017, a editora Dublinense traz ao Brasil José Luis Peixoto, poeta português que arrebata o público em mesa de debate e noite de autógrafos.

2018 chega e com ele um aumento nas vendas, pouco expressivo. As meninas mantém as vendas, autores da Lista PublishNews impactam na venda em livraria — Textos cruéis demais para serem lidos rapidamente (Globo)e Poesia que transforma (Sextante). Hilda Hilst finalmente é lida e vendida, é autora homenageada na FLIP 2018: De amor tenho vivido, Júbilo, memória, noviciado da paixão e Da Poesia lideram as vendas, todos editados pela Companhia das Letras. Ela ficaria besta com as vendas.

A venda de poesia em 2019 caiu. Os números do gênero não-ficção são diferentes: 16.587 exemplares vendidos, aproximadamente 798 mil reais. O público, mais plural e mais próximo da realidade do país, tem fome de saber e precisou se informar para as disputas de narrativas.

Desses números em livraria, dos 20+ vendidos, 04 a 06 são títulos de grandes editoras, demais, a maioria, são de editoras independentes tais como: 7Letras, Confraria do Vento, Mórula, Candido, Dublinense, Edições de Janeiro, Malê, Oficina Raquel, Reformatório, Texto Território, entre outras.

Além do engajamento das livrarias e livreiros, eventos literários, movimentos dos autores, ações em escolas e vestibulares impulsionam vendas e ajudam a manter a existência e resistência poética.
Ainda uma curiosidade sobre a danação da poesia, no famoso Canône ocidental, Harold Bloom, em mais de 700 páginas, menciona somente 05 poetas: Walt Whitman, Jorge Luis Borges, Fernando Pessoa, Emily Dickinson e o meu “querido” Pablo Neruda.

A Poesia resiste porque poetas continuam escrevendo, mas como bem observou André Capilé no III Vespeiro Poético, onde apresentei parte desta fala, ainda há mais poetas do que leitores de poesia. O que fazemos com isso? Criamos negócios e estratégias para formar novos leitores de poesia. E como bem lembrou Jean Candido, cada poeta precisa carregar a sua quitanda!

Nélida Capela,

Mestra em Teoria Literária-PUC Rio. Experiência no mercado editorial, curadoria nos eixos temáticos Africanidades, Estudos de Gênero e Estudos Indígenas. Elaboração e produção executiva de eventos e cursos. Treinamento de equipe para novas livrarias. Comunicação e Mobilização Social.