Por Igor Calazans

Em 2002, o poeta e crítico literário Alexei Bueno, então aos 38 anos, escreveu uma “carta aberta aos poetas brasileiros” sobre o cenário contemporâneo da literatura poética no país. O Jornal do Brasil publicou, em versão reduzida, esse manifesto que provocou enorme rebuliço, do desconforto à reflexão, aos grandes poetas, escritores, críticos e intelectuais da época. Nessa carta, Bueno critica avidamente a presença de uma suposta “ditadura estética”, que rejeita os poemas longos, além da falta de aprofundamento dos temas.

Não estou aqui para criticar a carta, apenas publiquei para que vocês tenham ciência desse manifesto e tirem suas próprias conclusões. O que realmente não podemos esconder é a grande coragem do então jovem poeta ao dizer o que pensa e além disso, expor seu amplo conhecimento. Hoje, sem sombra de dúvidas, Alexei Bueno é dos mais conceituados poetas do país e merece ser lido com toda a atenção.

“CARTA ABERTA AOS POETAS BRASILEIROS”

INTRÓITO

Há um mal-estar generalizado entre os poetas brasileiros,
atirados, há um bom tempo, a uma terra de ninguém crítica e
ideológica, à incompetência normativa e à pura mistificação.
Como tenho 38 anos, certa experiência na área e não sou burro,
entrego essas rápidas reflexões aos meus companheiros de arte,
sobretudo aos mais jovens.

O BRASIL NÃO É UM PAÍS SÉRIO

É preciso sempre recordar esta frase atribuída ao general De
Gaulle. Num país onde falsificam remédios para câncer e fazem
hemodiálise com água contaminada, deve-se desconfiar de tudo,
ainda mais de crítica de poesia. Não acreditem que a poesia
brasileira começou em 1922, como parecem julgar certos senhores.
É como um francês que julgasse que a poesia francesa começou
com Apollinaire. Não acreditem que letra de música é poesia.
Basta ouvi-la sem música para ver que não é. É como um francês
misturar Gilbert Bécaud com Rimbaud ou Baudelaire. (…) Não
acreditem em críticos que não tenham a mais vasta cultura
literária. Como é impossível que um crítico de cinema que não
conheça exaustivamente Griffith, Eisenstein, Godard, etc etc
seja um crítico de cinema. O crítico de poesia que só conhece
”vanguardeiros” e ”marginais” não pode criticar poesia
nenhuma. Vá ler Camões, vagabundo! Essa gente pode ter gostos
ou opiniões, como todos temos, mas o gosto é para a estética o
que a opinião é para a filosofia, nada. Como nada disso é
crítica.

AS MISTIFICAÇÕES

Quem inaugurou a mistificação crítica, inicialmente por
revisionismo, no Brasil, foram, como sempre, os famigerados
concretistas, com o abominável Sousa Andrade, ou Sousândrade, e
depois com as indefensáveis traduções de Homero e Virgílio de
Odorico Mendes, espírito quantitativo para quem o maior mérito
era traduzir os dois clássicos com menor número de versos que
os originais grego e latino. Quem tem o menor conhecimento do
que é um hexâmetro grego e latino sabe o que significa isso ao
se falar de decassílabos portugueses. Um caso de hospício. Não
deixem de ler, no entanto, Sousândrade e Odorico. O segundo tem
uma ótima métrica e interessante sintaxe, o primeiro, às vezes –
muito raramente – consegue escrever um trecho que preste. Mas
leiam antes, pelo amor de Deus, o nosso grande Gonçalves Dias
do I-juca-pirama e as traduções magistrais de Carlos Alberto
Nunes. Todos são maranhenses, ninguém poderá me acusar de
bairrismo. Só que os últimos não serviram aos interesses da
camorra.

A ATUALIZAÇÃO DAS MISTIFICAÇÕES

No princípio, o embuste era feito no passado, mas ele foi se
atualizando. Entre seus aggiornamenti mais notórios contamos
os casos de Ana Cristina César e Paulo Leminski, até chegar à
plena atualidade.

O FETICHISMO DA OBJETIVIDADE

O Brasil continua, até hoje, atolado na Escola do Recife e no
Positivismo. É o fetichismo da objetividade, que serve de base
para as maiores sandices críticas entre nós. (…) Há
subjetividades muito mais exatas e diretas que mil
objetividades. Falarão também contra a ”metafísica”. Mas se há
algum problema com a metafísica, A paixão segundo G.H., de
Clarice Lispector, que é tão puramente metafísica que às vezes
não parece literatura, deveria ser jogado ao lixo. Depois
falarão que a obra literária deve ser racional e concisa.
Concisa no país que deu Os sertões e Grande sertão: veredas!
Depois virão com a ”escadinha” das escolas, as genealogias
literárias, todo esse lixo oriundo da ideologia do progresso, a
coisa mais espúria em arte, criada no século retrasado. Para o
diabo! Toda a grande literatura é continuidade e sobretudo
ruptura. (…)

OS RÓTULOS

Nesse caminho, sem a menor dúvida, os que não fazem parte da
máfia serão rotulados. (…) O sr. Carlito Azevedo, serviçal mais
aplicado da máfia concretista-marginalóide, disse que eu era
”conservador”. Há quase 50 anos, todos os que não se apresentam
como discípulos fiéis do sr. Haroldo de Campos nesse país são
tachados de ”conservadores”. Ou agora, palavra sumamente
ridícula, ”neoconservadores”. Em relação a o quê, ou a quem? Há
muito tempo sou um dos únicos poetas a reagir aos dados da
imediata atualidade nesse país, já que, como homem normal, não
me sinto à vontade nesse shopping center compulsório gerido
pelos mísseis e bombas da ditadura militar planetária norteamericana.

A IDOLATRIA CABRALINA

João Cabral de Mello Neto, o admirável poeta que todos
conhecemos, foi cooptado por esse povo para criar genealogia
literária. Estão fazendo com ele o mesmo que fizeram com Bilac
após a sua morte em 1918. A ”verdadeira” poesia brasileira
sairia de Bilac etc. Saiu? Agora João Cabral é a bola da vez.
Como agravante, aproveitam-se dos inúmeros equívocos sobre
poesia e arte por ele falados. Grande idiossincrático e grande
mal-humorado, sempre falou os maiores absurdos sobre poesia. (…)
Leiamos todos a grande poesia de João Cabral, sobretudo a
anterior a Agrestes, e mandemos a ”genealogia” e os idiotas que
a pregam para o inferno. De João Cabral não sairá nada para a
poesia brasileira, como não saiu nada de Castro Alves, de
Euclides da Cunha ou de Drummond, só pastiches ou epígonos. A
”verdadeira” poesia brasileira será a de quem a escrever
grande, e João Cabral não merece ser avô dos pigmeus que por aí
invocam o seu nome.

A MORTE DA LIBERDADE

Após uma luta feroz para se estabelecer uma liberdade criadora
no Brasil empreendida pelos modernistas na vigência do
lamentável Neoparnasianismo, acabaram por criar outra camisade-força,
pior, na nossa literatura, que nega aos que não se
filiam a ela todos os territórios expressivos conquistados após
o Modernismo. E esse establishment, e essa deplorável intelligentsia universitária
que o sustenta, ainda se dizem ”modernos”. Os parnasianos se entocaram na Academia.
Os novos parnasianos, os da máfia concretista, se entocaram nas
universidades. O Parnasianismo foi o Concretismo da República
Velha positivista. O Concretismo foi o Parnasianismo da
ditadura militar. Todos grandes defensores do ”rigor formal”,
da ”clareza” e da ”razão”! Todos muito ”modernos”, essa palavra
que não quer dizer absolutamente mais nada! Ora, a Modernidade
acabou, e vá feder bem longe. A Modernidade morreu, viva a arte
e a literatura! Que os seus fósseis ladrem a sua ladainha
decrépita à vontade. Basta de múmias marqueteiras. (…) Fernando
Pessoa morreu outro dia, Borges (provavelmente um
neoconservador) morreu ontem, e agora a ”verdadeira” poesia é a
dos srs. Bonvicino, Azevedo, Ascher, ou outras covardias
pasteurizadas semelhantes, acolitadas pelos srs. Costa Lima,
Silviano, Moriconi, Buarque de Hollanda, Sussekind et caterva?
Para o inferno!

BASTA!

Em resumo, basta! Cabe a todos os poetas desse país,
especialmente aqueles esquecidos fora das metrópoles, mas
sobretudo aqueles que têm algo a dizer, aqueles que sentem a
imperiosa necessidade de dizer algo, pois daí nasceu sempre toda
a literatura, e não de ludismos formais, mandar todo esse lixo
ao espaço, e iniciar com o novo milênio uma nova poesia, que não
será nem ”moderna”, nem ”verdadeira”, nem ”legítima”, nem coisa
nenhuma, será grande quando o for, e moderna e verdadeira e
legítima porque o foi. O espírito sopra quando e onde quer, e
para nós há três milênios de riqueza poética às nossas costas,
um fabuloso desprezo ao nosso lado e o ilimitado da História à
nossa frente!

Alexei Bueno nasceu em 26 de abril de 1963, no Rio de Janeiro. Com mais de 10 livros publicados, faz parte de um seleto grupo de autores que escrevem poesia metafísica atualmente no país. membro do PEN Clube do Brasil, também destaca-se como editor e tradutor, tendo organizado a obra completa de poetas como Augusto dos Anjos, Jorge de Lima, Olavo Bilac, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, entre outros.