Nuno Rau, nascido na cidade do Rio de Janeiro em 14 de março de 1963. É poeta, letrista, arquiteto e professor de história da arte, tem poemas em diversas revistas literárias, e nas antologias Desvio para o vermelho, do Centro Cultural São Paulo | CCSP, Escriptonita, que co-organizou, e 29 de Abril: o verso da violência, ambas pela Editora Patuá. Publicou o livro Mecânica Aplicada (2017, poemas), finalista do 60º Prêmio Jabuti e do 3º Prêmio Rio de Literatura. É coeditor da revista mallarmargens.com e ministra oficinas de poesia no Instituto Estação das Letras IEL.
D.R. COM WALT WITHMAN
“Este homem está deitado de costas ao meu alcance…
com o cabelo preto grosso cortado rente… a cada
respiração um espasmo… Parece tão cruel. É um jovem
nobre… Muitas vezes não há ninguém com ele durante
muito tempo. Estou aqui sempre que posso.”
– Walt Withman, numa carta.
porra, Walt, todo aquele sonho deu
num beco escuro, as lágrimas
das bibliotecas secaram e a sinceridade
anda sendo vendida em cápsulas, os velhos
gênios do Ocidente – para muitos
só aqueles do velho continente (e você
está sentado ao lado deles na santa
ceia) – não guardam mais
conselhos úteis nos bolsos de seus paletós
escuros, por aqui há velhos que continuam
loucos e estão escrevendo versos incríveis,
vamos todos morrer, os que foram
publicados pela Viking Press, pela José
Olympio ou pela Companhia
das Letras e os que não foram também,
em cada canto do planeta há gente
desorientada, a libertação da alma levou
à liberação da palavra, mas nos
distraímos e ela foi correndo
ao supermercado, apesar disso
me interesso pelos corações de todos
esses poetas, infinitos rabiscos nus
e fluorescentes nas páginas de moleskines,
de tablets, smartphones, condenados
aos céus de uma Nova York imaginária,
codificados em senhas de wi-fi sob
a palavra suckcess, o mundo insulta
a beleza sempre que ela aparece, Walt,
e de nada adiantou escrever cartas
para os soldados, nem levar frutas,
tabaco, brandy, jornais e dinheiro
para os doentes da guerra, esses
que, como nós, escreviam muito mal, ou
temiam preocupar os que deixaram em casa, ou
que, depois de uma longa reflexão, tudo
o que puderam contar sobre si mesmos
era tão triste, tão triste, você devia
ter dito a eles, Walt, e com veemência,
“desçam do trem, rapazes, ele vai
para o precipício”, e não apregoar
em seu cântico uma esperança minada
pelos fatos e por essas cartas
de Deus, extraviadas pelas ruas
entre vitrines, dólares, fumaça e asfalto
– Nuno Rau –
ENTREVISTA
01 – O que significa ser Poeta na atualidade?
– Na sociedade que derivou das diversas revoluções burguesas dos últimos duzentos e poucos anos (ou seja, o mundo da política econômica neoliberal, que nos afunda hoje em realidades distópicas), a poesia é absolutamente irrelevante. Espremida entre as contradições da esfera pública (e sua idealização teórica, não raro) e a indústria cultural, a poesia parece ter cada vez menos alcance, penetração e influência na sociedade, o que é uma contradição com a quantidade e diversidade da produção atual. De todo modo, os papéis que a poesia já exerceu em formas anteriores de organização política e social do mundo ocidental não devem nos interessar mais, não devemos cultivar uma saudade desses tempos, será necessário inventar modos novos de fazer com que a poesia se afirme como uma intervenção em cada tempo histórico aonde ela venha a ser feita. Num ensaio publicado em 1986, Leminski nos dá o toque: a poesia é um inutensílio, e em um mundo onde as coisas só têm valor em função de sua utilidade (embora o valor em papel moeda não guarde uma relação necessariamente direta com essa utilidade, claro, porque cada vez mais o capitalismo se apoia em valores imateriais para gerar valor em moeda), produzir algo que não tem utilidade prática alguma já é uma intervenção, um gesto que pode ser chamado de revolucionário.
Disso concluímos que escrever poesia é uma atividade historicamente determinada, e que ser poeta implica em ter uma relação visceral com seu próprio tempo, uma relação crítica que se processa por meio da linguagem: algo na forma como cada poeta trabalha a linguagem, o que envolve a sintaxe, os conteúdos e os sentidos, os processos específicos da poesia, suas técnicas, a relação com essas técnicas, e tudo mais que seja inerente a essa atividade humana.
02 – Qual é a sua visão sobre a produção poética contemporânea?
Vou responder a partir da situação do Brasil. É muito bom poder viver em um tempo em que há menos barreiras para publicação e veiculação de poesia, e em que, principalmente por conta de processos políticos e sociais dos últimos 20 anos (pondo de parte, por óbvio, a guinada conservadora a partir do impeachment de Dilma Rousseff), houve uma maior democratização de espaços e de acessos, vozes que antes eram silenciadas puderam – na maioria das vezes, não sem grande esforço, ainda – se fazer ouvir e ler.
Aqui temos um ponto importante: essa diversidade e essa quantidade deveriam ter sido acompanhadas pelo desenvolvimento de uma crítica que operasse categorias que dessem conta do que está em jogo na produção contemporânea, mas a crítica se ausentou, de um modo geral. Sobressaem aqui dois eixos deste processo, e eles explicam um pouco tal apagamento: de um lado, os grandes meios de comunicação foram acabando pouco a pouco com os espaços destinados a literatura, e, de outro, a academia parece não ter dado conta do espectro da produção das décadas posteriores a 1970, porque o grosso de dissertações, teses e trabalhos em congressos (universo que, por interesse pessoal, procuro acompanhar) se volta, ainda, para um pequeno leque de nomes de algum modo já confirmados, deixando toda uma produção significativa sem o merecido olhar crítico-teórico.
Esse cenário se reflete também na elaboração de algumas antologias que partem do universo acadêmico (ou são por ele informadas) e que se pretendem retratos da produção atual, mas que seguem reféns de uma circunscrição a grupos específicos, a afinidades eletivas, e não a recortes eminentemente críticos que deem conta do que ocorre de mais consistente na poesia de hoje. Segundo alguns teóricos (como Alcir Pécora), o resultado do apagamento da crítica – e a consequente falta de parâmetros de juízo especializado/fundamentado sobre a produção – pode ter sido uma suposta irrelevância do que se escreve hoje. Tenho uma espécie de disconcordância com essa premissa: por uma via ela não considera que cada poeta faz, por meio de sua produção, um recorte crítico, afirmando ou recusando influências, e sempre reprocessando-as; por outro, existe de fato um percentual não pequeno de irrelevância no que se escreve e publica, sendo mais ou menos raros os livros (considerando a quantidade publicada anualmente) que a gente pega e sente o peso, a densidade. Só me pergunto se não terá sido sempre assim, já que, como disse acima, escrever é um ato fundamentalmente crítico, e para isso é necessário muito preparo (não necessariamente acadêmico), muita reflexão, aprofundamento, radicalidade.
03 – Qual é a função social da poesia e do/a poeta na atualidade? Ele/a precisa ser atuante e se posicionar?
Seguindo o mesmo raciocínio das respostas acima, escrever poesia com consciência dos processos intrínsecos e também aos processos históricos em que se vai imerso já é ser atuante, já se constitui numa forma de se posicionar. Um poema pode ter como objeto uma flor, ou bananas podres, ou uma pedreira, ou uma viagem de metrô pelas galerias subterrâneas da cidade e demarcar uma posição, definir um corte específico, ser um poema político no sentido mais amplo que se possa pensar (penso que meu livro Mecânica Aplicada é bastante político nesse sentido). Por essa perspectiva, a função social do/a poeta em qualquer tempo é, de saída, fazer boa poesia, que pode ser uma poesia engajada ou não. Por evidente, há momentos em que determinadas questões históricas avultam demais no horizonte das pessoas, e fica quase impossível não escrever sobre alguma coisa – mas a forma de escrever é o grande X da questão. Poemas como Elegia 1938, A flor e a náusea e Mãos dadas, de Drummond, são exemplos maravilhosos de como um poema pode ser explicitamente político sem desandar em linguagem panfletária. Bertold Brecht e Maiakovski também deram lições nesse campo.
04 – Inspiração ou transpiração: o que é mais importante na sua produção poética?
Um poema é uma conversa com o mundo no tempo presente (que, se tivermos alguma habilidade e sorte, poderá ultrapassar seu presente imediato e comunicar conteúdos para pessoas de outros). O momento em que o poema aponta no horizonte de qualquer poeta é provavelmente derivado do pensamento que está envolvido nessa conversa com o mundo, algo desperta a nossa atenção e, a partir disso, se move na superfície da linguagem, começa a ser elaborado em palavras numa dada ordem, com certo ritmo específico, com a sintaxe em um determinado modo, elaborando na tensão entre as palavras o que se quer dizer. A partir desse nanossegundo tudo é trabalho, e é preciso sempre ver a poesia como uma forma de trabalho humano, em que poetas lidam com os materiais e ferramentas de seu ofício, que são muitos, muito diversos, e de complexo manejo – qualquer coisa fora disso é permanência de ideais românticos que deveriam ter ficado no século XIX. Por fim, acho que quanto melhor o/a poeta, menos se percebem os andaimes da construção, e os seus vestígios, ficando apenas a visão do edifício pronto.
05 – Quais são suas principais referências poéticas? Como elas acrescentaram na sua escrita?
A questão da influência é na verdade um baile funk dentro da minha cabeça. Desde muito criança me interessei por poesia, e tive a sorte de poder ter acesso a ela, de alguns modos. Até os onze anos havia lido parte significativa da poesia romântica, parnasiana e simbolista brasileira, e me sentia uma criança estranha, porque gostava de uma coisa que só pessoas que já estavam mortas tinham feito. Aos onze descobri a geração de 1922, e esse estranhamento diminuiu um pouco: descobri que algumas pessoas vivas continuavam fazendo aquilo de que eu gostava tanto – ainda que fossem uns senhores bem mais velhos, aparentemente circunspectos (todos apareciam nas fotos com ternos escuros e óculos de aros bem grossos), me soavam como algo muito distante, embora eu gostasse demais de poemas deles. Aos treze anos veio a iluminação: descobri, por um acaso, a histórica Livraria Muro, no bairro de Ipanema (eu morava muito longe, em Jacarepaguá), e nela a antologia 26 poetas hoje, além de livros de Waly Salomão e Cacaso, entre outros. Nesse momento descobri que existia uma turma com mais ou menos dez anos a mais que eu, e que estava fazendo uma poesia que me interessava demais, que me parecia dar passos próprios nesse terreno, abriam caminhos pessoais. Acho que isso selou minha decisão de escrever poesia.
No caminho que descrevi acima, cinco poetas brasileiros foram, a princípio, muito importantes pra mim: Cruz e Souza, Drummond, Cabral, Murilo e Jorge de Lima. Muito diferentes entre si, mas acho que de tanto ler e pensar na carpintaria dos poemas deles, compus minha pequena oficina. Depois veio o impacto de Clarice, que me jogou no aturdimento de uma sintaxe vertiginosa – acho que todo/a poeta deveria passar por Clarice, pensando/sentindo a arquitetura de suas frases. Com Cecília aprendi a música, e também a potência de imagens. Pessoa me abriu universos, muitos, e ainda abre, seu olhar, sua técnica impressionante, diversificada, sua permanente encenação. Depois vieram Ana C., Secchin, Geraldinho Carneiro, Waly, Cacaso, Piva, Afonso Henriques, cada um deles me comunicando um lado do poliedro que é a contemporaneidade, e de cada um, como bom ladrão que todo poeta é, acho que roubei alguma coisa.
Sempre que penso nesse percurso, percebo o quanto a poesia brasileira foi importante pra mim, no todo. Isso não quer dizer que não tenha lido outras coisas – Borges, Byron, Emily Dickinson, Whitman, Lorca, os beatniks, Sylvia Plath, entre tantos –, mas que a poesia brasileira, junto com Fernando Pessoa, foi o que me motivou mais a conversar no processo de fermentação do que talvez se possa chamar de minha voz.
06 – Versos livres ou métricos? Linguagem coloquial ou erudita? Você diferencia poesia de poema? Como? Ainda há espaço para poemas líricos, clássicos e ditos “fixos”?
Acho que essa dicotomia entre verso livre e forma fixa é um falso problema. Pra começar, penso que não existe verso livre: essa expressão é uma contradição de termos (e não sou nada original ao pensar assim: Eliot já tinha expresso isso num ensaio dos anos 1920). O chamado verso livre tem uma série de técnicas que conferem a tensão necessária a um bom poema, e poetas precisam ter o domínio de seu ofício. Do mesmo modo, no que poderia ser o outro extremo (mas não é), não existe forma (completamente) fixa, ou não deveria existir. Claro que essa é uma frase de efeito, em que procuro expressar que um poema tem que sobrepassar as regras de métrica, ritmo e rima sem deixar de segui-las, se sua proposta for nesse sentido. Um bom poema encena a dança das palavras sobre os parâmetros que definem uma dada forma fixa em que ele foi feito. Um soneto, por exemplo, não pode ser um exercício de passos marcados, ao ler um bom soneto a gente esquece que está lendo um soneto, isso vira um pequeno detalhe em face do conjunto do que está no poema – e, quase mais importante que tudo, um soneto não deve feder a naftalina, não pode soar como algo feito no passado, a menos que essa seja uma estratégia irônica deliberada para atingir algum fim; um soneto escrito em 2021 tem que pulsar como qualquer bom poema de 2021 (e é isso que certos poetas ligados e geral a uma direita conservadora jamais vão compreender).
Existe uma outra característica de nosso tempo, e ela transforma essas dicotomias todas (verso livre e métrica, coloquial e erudito, entre outros) em falsas oposições: todo o material e todas as técnicas já desenvolvidas estão à nossa disposição, para uso consciente, com intencionalidade, tendo em vista algum efeito na escrita.
Sobre a diferença poesia e poema, é algo bem básico, embora a gente veja nas redes sociais muita gente fazendo essa confusão: poesia é o fenômeno, a manifestação artística, o que está em cada poema (mas pode também estar em um romance, um filme, uma pintura etc.); poema é o objeto, o texto específico, e pode ser em versos livres, forma fixa, poema visual, concreto, poema-processo, poema em prosa etc. Claro Enigma, de Carlos Drummond de Andrade, é um livro de poesia, composto por poemas em versos livres e também em forma fixa.
07 – Por que você escreve?
Essa foi uma pergunta que me perseguiu – e incomodou – por anos, era uma questão que, por questões pessoais, eu precisava responder pra mim mesmo. Na verdade, acabei demorando muitos anos pra lançar o primeiro livro exatamente por isso, porque não havia chegado a uma resposta. Alguns (bem poucos) anos antes de lançar o Mecânica Aplicada ( que saiu em 2017, quando eu já tinha 54 anos), é que finalmente cheguei a uma resposta que considerei verdadeira: escrever é conversar com o mundo. Nessa conversa, o mundo pode não estar nem aí, pode não responder, pode nem gostar dos rumos da prosa (no caso, do poema), mas isso não importa. Quem escreve não pode se importar se vier o silêncio como resposta, se tiver consciência de que está produzindo, do seu lado, uma conversa que não seja superficialidade ou banalidade.
08 – Estamos historicamente em uma geração que busca “revisar” os acontecimentos do mundo e trazer à tona as versões oprimidas. Com isso, muitas obras clássicas passaram a ser criticadas, assim como seus autores. É possível separar os tempos e não associar esse passado à atualidade?
Penso que há posturas que são absolutamente inaceitáveis, e outras que devem ser contextualizadas, pensadas no contexto da época. A posição racista de Monteiro Lobato, que tem seu ápice no episódio do livro O Presidente Negro, é inaceitável, até porque muito antes de sua época já se eram questionadas por diversas pessoas. O caso de Ezra Pound é muito mais complexo, e precisa ser relativizado, porque ele não aderiu simplesmente ao fascismo, sua posição envolvia questões éticas, estéticas, econômicas, tudo isso mesclado à névoa daquele presente complexo. A revisão histórica é necessária, só não pode dar lugar a patrulhas exageradas, julgamentos descontextualizados, cancelamentos acríticos e que não levam em consideração os quadros históricos e pessoais em que as coisas aconteceram.
E quanto a nós, não tenhamos a ilusão de não sermos criticados no futuro, se, por sorte, os escritos de algum de nós sobreviver: é só pensar no que fazemos hoje com os animais ditos irracionais (esses grandes Outros), e podemos supor que seremos considerados bárbaros carnívoros em algum momento do futuro em que a exploração dos corpos dos animais tenha sido superada (dia esse que espero não tarde tanto).
09 – Como você vê a efervescência da poesia e o aparecimento de inúmeros poetas nas redes sociais? Esse aumento traz benefícios? Ajuda ou atrapalha? Aproxima a poesia das pessoas ou banaliza a qualidade de produção?
Tudo tem dois lados, sempre. Claro que o aparecimento cada vez maior de poetas nas redes sociais é muito mais positivo do que negativo. Pensar o contrário seria pensar a poesia como uma atividade de eleitos, como algo elevado, a que poucos e poucas poderiam alçar, seria mitificar poetas, e nosso caminho deve ser o oposto: pensar a poesia como trabalho humano e como diálogo com o mundo. Quanto maior e mais diverso for o diálogo, tanto melhor. E, se pensarmos bem, vamos concluir que sempre vai haver uma tendência para a banalização, por parte de alguns, em paralelo a outra, que é, pela democratização de saberes e práticas, um aprofundamento do ofício.
10 – Como poeta, de que maneira você acha que será lembrado/a um dia?
Não faço ideia sequer se serei lembrado. Acho que pensar nisso é projetar o agora num futuro incerto, algo como as pessoas que imaginam algo depois da morte no plano metafísico, o que é, do meu ponto de vista, uma potencial ilusão. Melhor viver o agora, viver todas as dimensões da vida presente, inclusive isso que nos reúne aqui, o escrever poemas – mas escrever poemas como uma afirmação deste presente, de suas questões, pensar suas contradições, e assim já estaremos fazendo pelo futuro o que podemos fazer.
*Entrevista retirada do livro “Na Poesia Viva: A Poesia Contemporânea Em Frente e Verso”, de Igor Calazans, publicado pela Editora Viés, em 2020.